sábado, 30 de setembro de 2006

29 – Città Alta.

Acho que me enganei a noite em que eu acordava com os sons de Maria vomitando foi de domingo para segunda-feira, pois na noite anterior eles passaram a noite na rua. As crianças da casa aprenderam a se virar sozinhos logo cedo, era uma graça ver Jorgito cuidando da irmã mais nova, ele tinha apenas 11 anos, Lica tinha 9 anos. Umas crianças vivas, comunicativas e principalmente inteligentes, falavam italiano muito bem, eu tentava me aproximar de Lica e pedia para ela conversar só em italiano comigo, funcionava, aquela garotinha me ensinou tanto. Em casa às vezes misturavam italiano no espanhol e mesmo a menina não sabia muitas palavras em espanhol. Jorgito era um menino simpático, sorridente, já tinha consciência dos danos da bebida na vida, não gostava daquelas garrafas e sempre as jogava fora quando surgia uma oportunidade. Dava gosto ficar com eles. A mãe, Maria, tinha deixado eles com o pai na Bolívia e partido para Bérgamo sozinha, tentar a vida lá. Ficou algum ano isolado de sua família, batalhando. Tento imaginar o que ela passou, conhecendo-a e sabendo de suas companhias não é muito difícil saber como foi. Um belo dia ela conseguiu, através das regulares anistias que o governo italiano dá aos imigrantes ilegais, documentos, passou a ser legal, então fez o que era de costume, trouxe toda a família e os regularizou também. Jorge ficou meses desempregado, vivendo da renda de Maria, até que conseguiu trabalho nessa fábrica onde trabalha até hoje. Por isso, quando Maria ficava brava, jogava na cara de Jorge que o apartamento era dela, ele ficava uma fera, era uma comédia. A noite foi uma tranqüilidade de novo, dessa vez porque todos tinham que trabalhar no dia seguinte. Eu mal podia esperar para ligar ao Alex e saber das novidades, lá no fundo eu queria acreditar que ia dar certo, que um estranho estaria preocupado em me arrumar um emprego, não podia acontecer nada de errado mesmo.

Levantei disposto a finalmente agir, andar pela cidade em busca de emprego e aprender italiano, conhecia mais os macetes com as conversas que tive, com Marcos principalmente. Aprendi as palavras que devia usar “Cerco lavoro” (lê-se tcherco), mas ainda estava faltando o currículo. Tomei o café da manhã com o casal como de costume e saí com eles para a rua. Tem horas que a teoria se torna muito mais fácil que na prática, caminhei e não encontrava nada, até que vi uma agência de empregos, entrei lá e soltei as duas palavrinhas, a atendente me disse alguma coisa e balancei a cabeça, no começo era duro entender, na terceira semana já tirava de letra tudo. Consegui preencher o formulário ali mesmo. Quando a gente preenche um o segundo se torna mais fácil e depois não tem mais segredo, passa a ser repetição. Era isso que estava faltando para eu fazer meu currículo, uma idéia do que é preciso de dados para colocar. Nesse dia fui em apenas duas agências e quando percebi estava na base da montanha que vai dar na Città Alta. – Já que estou aqui o que custa subir né? – Logo me vi em um beco que subia em direção ao topo. Fui seguindo a ruela, deserta, não se via ninguém. Subida íngreme. Finalmente cheguei na ponte que ia dar no portal suspenso das muralhas da cidade. Que visão mais linda! toda de pedra. E pensar que aquilo tudo foi construído a mais de quinhentos anos, faz a gente refletir em muitas coisas.

Atravessar o portal foi algo místico, parecia estar entrando em outro mundo. Em volta da cidade, acompanhando a muralha, havia um jardim onde as pessoas passeavam, corriam, liam. O povo Europeu sabe aproveitar muito bem seu espaço público, são sempre lotados. A vida lá em cima era muito diferenciado do resto da Itália, o trânsito era limitado só para carros autorizados, o ritmo das pessoas eram mais desacelerados, se exercitavam muito subindo aquelas ladeiras, no topo de tudo, no cume da montanha tinham as igrejas, uma basílica, museus, universidade. Claro, eu tinha de dar um caráter não turístico à minha ida até lá, fui na universidade me informar sobre os cursos da minha área. Infelizmente não tinha nada que me encaixasse. Caminhei várias horas por tudo, sempre perguntando qualquer coisa que me vinha na cabeça só para praticar um pouco italiano, qualquer coisinha era motivo de parar uma pessoa. Um fato curioso era que não se via estrangeiros ali em cima, só italianos. – Será que não tem um jeito de eu me mudar para cá? – Rodei toda a cidade e só parei quando encontrei uma torre de vigia, tinha um parque, igreja e até um tanque da Segunda Guerra Mundial estacionado, aquela máquina ali avistando qualquer inimigo em baixo devia fazer um estrago violento. Apareceu ali um grupo de estudantes do primário com um guia explicando tudo, os acompanhei até o final, de longe, afortunadamente o guia tinha uma voz forte e muito clara consegui compreender algumas coisas, não muito, percebi uma leve melhora.

O segredo é acostumar os ouvidos à musicalidade do idioma, depois disso consegue-se compreender o vocabulário que a gente vai formando paralelamente ao processo de adaptação dos ouvidos, não se pode ter aquela preocupação de entender o locutor, mas de captar a tonalidade e ritmo, todo idioma tem o seu segredo, um macete para acelerar o aprendizado, nas línguas de origem latina o macete está principalmente na pronunciação das palavras, a junção “ch” por exemplo, se pronuncia de modo totalmente diferente entre o espanhol, italiano e português. Depois de pegar o fio da meada, não tem muito no que avançar, é só criar vocabulário. Fácil.

O dia estava acabando, voltei para casa. Lá jantei com David e conversamos um pouco, Mercedes chegou depois, fazendo barulho, a festa de ontem não tinha acabado para ela ainda, estava grogue. Não deu para falar muito com ela. A sorte é que ela me lembrou que faltava alguma coisa. Ligar para o Alex! Dessa vez usei meu celular.

– Alex? E aí? Conseguiu encontrar com o encarregado?

– Olha só. Vem aqui na quarta-feira e traz o seu currículo, o encarregado pela contratação quer dar uma olhada.

– Como faço para chegar aí? A que horas?

– Você tem que pegar o trem para Varese, vem depois das 17:00H, me liga que eu vou te buscar no terminal de trem.

– Na quarta né? Pode deixar que estarei aí.

– Beleza, nos vemos então.

– Pô, pro cara ir me buscar no terminal é porque ele estava comprometido em me ajudar. – Pensei comigo.

Agora só falta eu fazer o currículo.

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

28 – Resultados obtidos.

No dia seguinte, domingo, a casa estava uma confusão, foi tudo largado do jeito que estava, parecia que o lugar tinha sido abandonado às pressas. Sanchez e Maristela que passaram a noite no sofá lá fora sumiram, foram tomar no bar, aliás, todos haviam saído, continuávamos apenas os três no quarto e embaixo sobrou as duas crianças, Jorgito e Lica e mais uma garota que havia aparecido no final da festa, era bonita, tinha um rosto atraente, porém... Quando desci as crianças estavam brincando e a garota estava lá as entretendo, era uma garota calada, todo brinquedo que Lica trazia para brincar ela pegava e examinava, com um jeitinho imparcial, não dava para decifrar a sua face. Jorgito subiu para se arrumar e sair. Estava indo comprar um lanche para os dois no Mac Donald, seria o almoço deles, foi a deixa para a garota ir até à cozinha e preparar alguma coisa para comer também, aquela comida que passara a noite toda descoberta abandonada na pia, a cor pálida característica do ensopado de frango que usualmente se preparava ali tomou nuanças esverdeada. Ela não teve pudor, esquentou tudo e mandou brasa. Quando Jorgito voltou com os lanches, ela ficava ali de butuca beliscando uma batatinha, pegando os restos que as crianças deixavam, lembrava uma galinha que bicava tudo o que estava disponível e sempre com uma expressão desprovida de qualquer demonstração de emoção. Ela sabia que era bonita, estava habituada a ser assediada, mesmo parecendo ser nova desenvolveu uma característica típica de quem está acostumada a receber elogios.

Mais à tarde as pessoas começaram a chegar. Conan se encanta com a garota e fica louco para convidá-la a tomar uma cerveja, convida ela e Mercedes, só que ficou sem dinheiro e saiu pela casa toda tentando emprestar dinheiro, dizia que tinha para devolver, estava no banco, veio a mim com a mesma história, ninguém emprestou nada até que Jorge chegou e emprestou para ele. Ele ficou contente da vida e se foi com as duas.

Marcos, visivelmente passado se senta no sofá para conversar. Eu continuava desconfiado dele, aquele interesse em me ajudar, querendo que eu saísse com ele de todo jeito, a toda hora se oferecendo. Não sei. Minha intuição dizia para ficar esperto. Engraçado como quando a gente evoca o assunto da intuição é porque ela nunca se engana né? Pois é, a minha intuição disparava o alarme quando se tratava de Marcos. Ele disse para nós que na noite anterior encontrou Mercedes envolvida em uma encrenca feia com a polícia, por pouco não a pegam. Segundo suas próprias palavras, que também era ilegal no país, conseguiu carregá-la nos braços para longe antes do carabinieri chegar, ele chegou a ouvir a sirene. Mercedes não conseguia andar sozinha de tanto que bebeu. Passamos aquela tarde conversando, estava uma bagunça, mas calmo. Naquele dia dei muita liberdade para Marcos se aproximar mais de mim, ele me ensinou algumas palavras em italiano e conversamos sobre os padres. Já havia ouvido falar neles, inclusive Marina estava se referindo a eles no meu primeiro dia. Em Bérgamo havia um seminário, Beneditino se não me engano, que dava comida aos desempregados, almoço e janta, Marcos estava sempre lá, só que o horário era muito ingrato, para o almoço, começava às 14:00H e terminava 15:30H, nesse horário as agências de emprego abriam, era difícil ficar se deslocando pra lá para comer. Falaram-me também de Mochos, foi quando me veio na memória o que Marina estava me falando e consegui associar as coisas, tinha um padre naquele distrito que passara 15 anos na Bolívia numa missão, falava bem espanhol. Ele montou um sistema para auxiliar os imigrantes, tentava encontrar empregos, auxiliava com mantimento, escutava o que faltava para as pessoas e tentava atendê-las no que fosse possível. Eles atendiam uma vez por semana, acho que nas quartas-feiras. Tinha o padre Estéfano, que auxiliava com todo quanto era tipo de coisas também, ele não costumava deixar a gente ir de mãos abanando, não fazia milagres, nenhum padre fazia. Acho que o padre Estéfano era Franciscano, esse atendia todos os dias, a estrutura de atendimento dele não era tão sofisticada quanto de Mochos. Por fim tinha o padre Marco, ele não tinha estrutura nenhuma e nem se dedicava a ajudar muito as pessoas, só que todos o procuravam, na sua paróquia tinha um curso de italiano, uma vez por semana.

quinta-feira, 28 de setembro de 2006

27 – Placar da festa.

Na casa, quando chegamos, estava tudo quieto, Sanchez dormia no sofá colocado lá fora para a festa, junto com outra pessoa, parecia Maristela. Tinham outros espalhados pelo chão da sala dormindo, convidados inclusive. O casal que parecia ter chegado no mesmo dia que eu estava lá fora num colchão desmaiados, não tive muito contato com os dois, nem sequer soube seus nomes! Pela movimentação deles e postura na conversa pareciam saber o que queriam, ao contrário da maioria dos desempregados na casa eles viviam andando por aí pela rua, só vinham à noite para dormir, se bem que logo no começo eles se desentenderam e a senhora o abandonou. Sumiu da casa. Pela discussão, que acompanhei muito distante, parecia ser coisa grave, depois de um tempo eles reataram e passaram algum tempo juntos, pareciam entrosados, até que encheram a cara em um desses finais de semana e brigaram novamente. Ela o esbofeteava na cara, com golpes duros, ele tentava detê-la sem sucesso, calmamente. Depois daquele segundo episódio os dois sumiram e não me lembro de vê-los mais, nem perguntava o que tinha se passado com eles para ninguém. Infelizmente não tive a oportunidade de conhecer suas idéias e objetivos, me intrigavam, principalmente o senhor, sempre quando via ele conversando dava ares de sabedoria e muita seriedade nas conversas, postura igualmente adotada por Conan, quando este estava sóbrio, porque nos finais de semana era outro Conan, parecia mais com O Bárbaro, só que na versão cômica.

A casa estava no silêncio não porque a festa havia acabado, mas sim porque ela se transferiu para um bar perto dali, os demais foram para lá, e passaram o resto da noite bebendo. Afortunadamente no quarto não havia uma alma viva, pudemos dormir a noite toda em paz inclusive durante parte da manhã. Estela costumava dormir na casa de amigos nos finais de semana, principalmente para não ter que trombar com Conan bêbado, Mercedes deve ter ficado na casa de seus amigos ao lado e Conan com certeza dormiu no bar ou estava bebendo até domingo à tarde, não sei, ele só foi aparecer mais tarde para poder dormir bem e ter condições de acordar pronto para trabalhar na segunda-feira. Essa era uma característica das pessoas que ali tinham emprego, começavam a beber na sexta-feira à noite e paravam no domingo depois do almoço, com exceção, obviamente, de David que quase nunca bebia.

Os que trabalhavam na casa era David que era pedreiro, ajudava na construção de um prédio, estava ilegal no país e mesmo assim ganhava muito bem, milagrosamente não exploravam o fato de ele ser ilegal para pagar menos, o que era comum naquelas situações. O patrão dele não tinha o hábito de contratar ilegais, pois dá muito problema caso a fiscalização pegue, só que David teve a oportunidade de fazer um servicinho rápido e agradou, além disso, com aquele jeito dele de saber agradar as pessoas, presenteou-o no final do serviço com algo típico da Bolívia, acho que com uma boina de índio Inca, assim ele o fisgou de vez e conquistou aquele emprego. Sandra trabalhava cuidando de uma senhora bem idosa, trabalho comum na Itália. Por isso que a maioria dos estrangeiros eram mulheres, era mais fácil de encontrar emprego. Jorge e Conan trabalhavam na mesma firma que fabrica azulejos, na produção. E só. Ninguém mais trabalhava ali!

À noite eu acordava com os sons que Maria fazia ao vomitar, sempre acontecia isso, ela bebia e batata, quase morria de tão mal, dizia que aquela seria a última vez e depois não resistia. Esquecia-se de todo o mal que passava. Ninguém a deixava parar de beber, insistiam para tomar só um pouquinho. Mais um pouquinho. A última... Como pode? Um amigo tem uma fraqueza e precisa de ajuda para não ter que passar por aquela situação extremamente desagradável e danosa para a saúde e ao invés de receber apoio acontece o contrário, a puxam cada vez mais para o buraco. Inacreditável. É um claro exemplo do que a ignorância pode causar no coletivo. Existiam outros que queriam largar a bebida, tinham consciência do mal em todos os sentidos causado por essa droga, só que havia um complô coletivo inconsciente que tentava a todo custo impedir que consiga. Um fenômeno quase místico. É exatamente aí que muitos diriam que é a obra do capeta agindo.

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

26 - Duas festas não é demais?

Nem uma semana que estou em Bérgamo e já é a segunda noite que saio de carro para me divertir. Que peso na consciência. Não estou aqui para isso. Eu sempre tive a prática de procurar uma justificativa justificável que justifique um meio de justificar a justiça por trás disso tudo, ou seja, encontrar o lado nobre da coisa. Qualquer argumento que viabilizasse o meu contato com outras pessoas, principalmente pessoas até então desconhecidas para mim era válido. Primeiro porque precisava de um emprego e quanto mais gente mais chance de ser lembrado na hora de pintar um. Segundo precisava praticar italiano e conhecer alguém que soubesse falar era uma oportunidade de ouro, ao invés de pegar um para Cristo e aborrecer ela com meus interesses pessoais enchendo-a de perguntas e usando ela para o meu aprendizado, poderia aborrecer um pouquinho de cada um sem que eles se dessem conta ou se sentissem usadas. Basicamente esses dois argumentos eu usava como consolo para não me sentir um egoísta por estar saindo por aí enquanto minha família ficava no Brasil se privando dessas coisas. O efeito colateral dessa tática que adotei por lá, é que hoje potencializei aquela pequena necessidade que toda pessoa comum tem de estar em contato se comunicando com as pessoas que a rodeiam, às vezes acho que esse costume me atrapalha um pouco, é só uma impressão não comprovada.

A primeira vez que saí à noite, foi durante a semana e adivinha com quem? Acertou quem disse David. Fomos para o cinema com um amigo dele, de carro. A Sandra não foi, as mulheres não tinham muitos direitos ali. Perguntava-me o que estava fazendo ali, se eu disser que entendi alguma coisa do filme estarei mentindo. Minto. Entendia quando os mocinhos diziam “ragazzo” que significa rapaz, mas só fui entender “ragazzi” no fim do filme que é o plural de “ragazzo”, porque perguntei para os dois.

A noite de Bérgamo é movimentada, creio que é até pior do que durante o dia, principalmente num final de semana, parecia que eu estava em uma capital. Como sempre com minhas antenas ligadas para não perder nada, principalmente empresas que dessem para passar depois para levar meu currículo, que precisava terminar de escrever. Passamos em frente a uma industria de eletrônica grande, mas não deu para encontrar depois, ainda estava muito verde o meu senso de direção na cidade. Consegui marcar o local que o irmão de Sandra estava nos esperando, era um pouco afastado do nosso ponto de partida, em uma pracinha perto de um bingo que ainda iria visitar na próxima semana, dessa vez não irei para me divertir, será para pedir emprego.

Os irmãos de Sandra. Irmãs principalmente. Só eles me renderam algumas histórias para contar. A conferir. Fomos apresentados um para o outro e seguimos para a boate. Um point de... Bolivianos. Ah! A música, Cúmbia remixada. Tudo bem não será para o resto da vida, eu tinha mais que aproveitar aqueles momentos, um dia sentirei falta, tenho quase certeza disso. Seria um pecado se eu não tivesse dançado né? Tinha que corresponder às expectativas de meu amigo, ele saiu principalmente para eu conhecer os lugares e por uma pressãozinha de Sandra também, que adorava bailar. Ficamos lá numa boa por um tempo, então resolvem me levar para outro lugar, um bar cujo nome era brasileiro. Ficava em outra ponta da cidade, era maior e mais bem freqüentada, porém com algumas indecências também. Havia uns três ambientes com diferentes músicas em cada uma, fomos para a ala mais afastada, quase escondida, era menor e onde o povo se soltava mais, vi algumas garotas, todas brasileiras, tenho certeza que faziam programa, ninguém me disse nada, mas com aquelas roupas e as companhias com senhores idosos, quando não era idoso era algum panaca se esfregando em alguma delas, na frente de todo mundo, e ainda achava que estava abafando! O ser humano é muito engraçado, patético. Essas cenas me levam a refletir e questionar se alguma vez já produzi uma cena semelhante àquela crendo ser o máximo. É a tal história da mentalidade distorcida, “saber aproveitar a vida”, é o conceito que se passa pela cabeça de todos só faltou o mundo inteiro combinar o que exatamente isso quer dizer. As meninas logo descobriram que eu era brasileiro, aí veio aquela música do “vai dançando na boquinha da garrafa”, veio um rapaz meigo me tirando para dançar na frente da garrafa que colocaram no chão, isso depois de todas terem feito. Qual é? Não pensei duas vezes, saí dali e fomos para o saguão principal, as músicas eram mais decentes só que já estava acabando e o bar ia fechar. Ufa. Voltamos para o nosso canto, por hoje chega.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

25 – Baixaria em outro país.

Lá em cima no quarto estavam David e Sandra sozinhos, calados, deviam estar discutindo sobre o ocorrido alguns minutos antes. Desabafei com eles sobre o caos que estava começando lá embaixo, eu estava horrorizado. Para eles não era nada de mais, mas David, numa rara demonstração de lucidez entre seu meio relatou-me todos os males que a bebida lhe trouxe, os hematomas que sofreu com brigas, oportunidades de trabalho perdido, amizades destruídas, o abismo que a bebida estava levando-o quando decidiu dar um basta. Podem parecer óbvio os problemas que o vício em bebida alcóolica acarreta, mas vindo de uma pessoa que foi criada nesse meio, cujos valores divergem bastante do conceito politicamente correto que é tido como absoluto pela sociedade que fazemos parte, é algo de se admirar. Pena que as pessoas são falhas e têm recaídas de vez em quando. A idéia que se tem entre eles é de que aproveitar a vida é beber, ouvi da boca de vários a seguinte sentença: “- Somos felizes porque sabemos aproveitar a vida”. Palavras proferidas dentro do contexto da discussão em torno da cerveja. Eu sempre procurei ser um exemplo alternativo a esse modelo que eles acreditavam, sem radicalismo, não tentava transformar a cerveja em um vilão, até tomava um copo quando me convidavam para não fazer desfeita, mas deixava claro que era em consideração à pessoa que eu iria beber e não porque gostava. David era super amigo dos filhos de Marina, viviam juntos para cima e para baixo até que um dia, sem qualquer motivo brigaram, estavam embriagados, David se machucou muito e chegou a levar pontos na cabeça, passei a mão no local acidentado, dava para sentir que foi algo grande o que aconteceu ali. Aquele rapaz lá embaixo que achei tão calado e calmo era o mais violento quando bebia, entre os filhos de Marina, segundo as próprias palavras de David.

Pouco antes de Mercedes raptar sua amiga para a casa dos vizinhos, ela tentara pular a cerca para o próximo pátio para então pular um muro e entrar na festa ao lado, a pobre já havia bebido tanto que até deve ter se esquecido que usava muletas, quando conseguiu, com muito custo, passar para o pátio ao lado levou uma chamada dos donos, a empurraram e a obrigaram a voltar por onde tinha entrado, eles falavam espanhol também, nisso Jorge teve que intervir e chamar a atenção dela, ela chorou e subiu para cima sozinha, depois de um tempo Sandra desce para reclamar da Mercedes que estava molestando o casal no quarto, dessa vez é Maria que chama a atenção dela.

– Mertche, por favor, não quero discussões hoje. É aniversário de meu esposo e até eu estou me controlando para não passar dos limites.

Todas essas broncas foram na frente de todos. Mesmo alta na bebida ela sentiu vergonha, foi então que ela praticamente seqüestra sua amiga para a festa dos amigos. Para ir até lá tinha de sair do condomínio pela rua e entrar no próximo portão, esse foi o motivo de ela tentar pegar um atalho pelos pátios, era mais fácil. A partir daquela noite Mercedes começava a andar para trás, fazia burradas atrás de burradas.

David se animou comigo lá em cima, propôs de sairmos para a balada.

– O que você acha de sairmos para bailar?

– Mas como? Onde?

– Posso ligar para um amigo vir nos buscar de carro.

– você é quem sabe. Eu topo.

Ele liga para Giuseppe, um italiano que ele havia conhecido na rua. O cara era simpatizante de bolivianos! Divorciado e sem filhos, devia ter em torno de 36 anos, não era de muita conversa, ficava na dele. Aquela noite foi a única vez que o vi e nos falamos pouco. Paralelamente Sandra liga para seu irmão para perguntar se ele gostaria de ir também, ele topa. Giuseppe chega rápido e liga para David para avisar que já está esperando.

Eu não podia rejeitar o convite de sair, mesmo estando sem vontade de ir. A festa daquela noite já tinha sido suficiente para mim, mas precisava conhecer pessoas, ali era fundamental ter contatos, muitos conseguiam emprego por indicação de alguém, se conhecer um italiano então era melhor ainda. Sempre tomei como regra não recusar nada.

Quando descemos e vemos, Giuseppe estava com seu carro no portão do condomínio do lado na entrada de onde estava rolando a festa dos amigos de Mercedes, havia se confundido de lugar, e como ironia do destino o filho de Marina, por algum motivo, estava discutindo com Giuseppe, a ponto de ter vindo um dos moradores do lugar e ameaçado de chamar a polícia, carabinieri é como um palavrão lá, pois a maioria está ilegal no país. Vi de relance Mercedes praticamente implorando para o morador se acalmar, minhas atenções estavam mais voltadas para a briga que parecia preste a acontecer. As coisas esquentaram um pouco e Giuseppe dá um empurrão no rapaz, nesse momento David e eu intervimos e tentamos separar a briga, Mercedes e sua amiga ficavam gritando, chorando. Eu não conseguia entender nada do que se falava, estavam misturando espanhol com italiano, devia ser pelo nervosismo. Eu agarro Giuseppe e David agarra o outro, creio ter desviado um pouco a atenção dele para mim porque eu não parecia um deles, boliviano, e não estava falando italiano, ele me olhou com olhar de dúvida, pelo menos funcionou, ele deixou quieto e entramos no carro. Olho para fora e vejo o chapado do filho da Marina discutindo agora com sua esposa, feio, então ele lhe dá um safanão na cara e Mercedes grita chorando com o rapaz. Não sei como a história se acabou o carro logo virou e perdi a vista dos três. Que baixaria.

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

24 – Festa logo de cara!

Finalmente chegou meu primeiro final de semana, ia ter festa, estavam para comemorar o aniversário do Jorge, o responsável pelo arrendamento da casa, soube só no dia quando estavam fazendo os preparativos, trouxeram muita cerveja, carne para churrasco, um panelão com frango, só acho que esqueceram de colocar o tempero, bem não deu coragem de provar para saber, foi o cheiro que denunciou a deficiência e a cor pálida de defunto cozido. Como eu tinha previsto, tanta novidade iria desviar minhas atenções e eu acabaria esquecendo de comer, não senti vontade de nada nas primeiras semanas. Pela movimentação parecia que a festa seria grande. Enquanto a noite não vinha tentei ser útil em algo e ajudei a arrumar as cadeiras e carregar cervejas, que era o que mais tinha.

Aos poucos os convidados iam chegando e estava dia quando todos tinham terminado de chegar. Vieram parentes de Maria e Jorge aos montes. Amigos, fora o pessoal da casa que não era pouco. Esses bolivianos adoram uma desculpa para festejar, quero dizer, para encher a cara. A noite estava agradável, não fazia calor nem frio ficava-se confortável com qualquer roupa. A maioria ficou reunida lá fora no pátio, montaram uma churrasqueira num canto, em frente à janela do banheiro, jogavam a carne em cima da grelha, não sei se o problema da carne provinha do fato de ter sido comprada na Europa ou o churrasqueiro estava aprendendo ainda, só sei que estava crua e dura, para completar o arroz era papa, quase uma sopa de arroz, acho que me acostumei demais com a cozinha brasileira. Colocaram o sofá da sala lá fora e todas as cadeiras formando um grande círculo. O cenário era muito curioso, nem no México eu havia visto tantos descendentes de índio reunidos numa festa conversando ao mesmo tempo. E os vizinhos? O que eles pensam daquilo? Que eu saiba ninguém foi reclamar. Aquela música alta, risadas, gritos, barulho, não pareceu incomodar ninguém. O pátio fica voltado para um prédio mais sofisticado e as janelas dos quartos eram voltados para nós, além disso, a festa foi acabar muito tarde, para ser exato na manhã do dia seguinte. Fui me dar conta do estilo de música que eles gostavam de ouvir na festa, chama-se Cúmbia, acho que é de origem colombiana. Muitas rádios especificamente de Bérgamo tocavam Cúmbia entre seus repertórios. Tanta Cúmbia que fui obrigado a ouvir durante todo o tempo que estive com eles. Não sinto a menor falta, dia e noite, dormia ao som de Cúmbia.

Lá conheci um dos filhos de Marina e sua esposa. O suposto namorado de Mercedes não apareceu, na realidade nunca cheguei a conhecê-lo, depois fiquei sabendo que ela não queria mais nada com ele, vivia bebendo e aprontava muito, ele roubou um monte de cerveja do carro de Jorge uns dias antes de eu chegar, quebrou o vidro traseiro e surrupiou tudo! Ficou com o filme queimado na casa. Marina nunca sabe das confusões do filho, todos escondiam para poupá-la, era uma pessoa muito querida ali, ela mesma não apareceu na festa. O filho que foi era calado, já a esposa mais comunicativa, tinha graduação em psicologia e era grudada com a Mertche pareciam muito amigas. Ela deveria ser descendente de europeu, diferenciava bem dos demais, cabelo loiro e rosto bonito.

Aquela foi a primeira festa de aniversário que tomei conhecimento em que os anfitriões vendiam a cerveja para seus convidados dentro da própria casa, se bem que no final Maria acabou convidando quase todo mundo a tomar uma cerveja e coitado de quem rejeitasse. Maria era uma pessoa amável, muito delicada falava baixo, agradável conversar com ela, mesmo tendo uma aparência rústica de índio andino sua simpatia compensava qualquer outra imperfeição física. Tudo mudava quando bebia, acontecia uma transformação, sua feição tomava aparência diabólica, tinha um olhar raivoso e mau humor característico, na festa do marido até que ela se controlou bem, só no final exagerou um pouquinho.

Entre os convidados conheci Consuelo, praticamente uma senhora, dentro dos padrões de gordinha, muito atirada e sempre buscava puxar conversa comigo, muito amiga da irmã de Maria, eu tentava fugir dela e conseguia antes de colocarem as imaginações em ação. A certa altura todo mundo estava com a cara cheia. Quase todos, David, Sandra, as duas crianças de Jorge e eu, não estávamos, o resto... Que cenário bizarro, e era uma transformação de personalidade, não se reconheciam quase todos. Creio que essa transformação tem a ver com a natureza reprimida deles, eles têm um complexo de inferioridade muito acentuado, conseguem superar a dos brasileiros por incrível que pareça, pela bebida eles conseguiam se expressar com tudo o que eles guardam para si, naquele momento é tudo extravasado. As brincadeiras passavam a ser discussões, banais, geralmente sem razão.

O filho de Marina desmaiou, ficava dormindo sentado, sua esposa largou ele ali e saiu com Mercedes para o apartamento dos vizinhos que estavam bebendo também, quando ele acordou perguntou por ela e me intimou a ir com ele buscá-la, estava bravo e nem me atrevi a contrariá-lo, como estava pra lá de mamado fingi sair logo atrás dele e quando se afastou um pouco voltei para dentro e fechei a porta com o trinco, sorte que ele não voltou para me buscar, nem tinha consciência do que estava fazendo. A festa acabou para mim, agora tinha se transformado num caos. Achei melhor subir para minha cama, felizmente eles respeitavam o nosso quarto, ninguém era autorizado a subir, fazia parte das regras da casa.

sábado, 23 de setembro de 2006

23 – Confusão.


Levou mais tempo do que imaginava para eu começar a funcionar a pleno vapor, basicamente conseguia executar uma tarefa por dia e olha lá. O próximo passo seria fazer meu currículo, tentei rascunhar alguma coisa no papel com meu dicionário italiano do Palm, pero não saia nada, não mantinha o foco, talvez sege o fuso horário porque eu dormia muito, tanto que fiquei preocupado. No terceiro dia acordei com Sandra me chamando para tomar o café da manhã com ela e David, e a partir daquele dia passei a comer com eles todos os dias, realmente o David era uma pessoa especial, se preocupava comigo e sempre queria saber o que eu havia comido durante o dia.
Depois do café da manhã eu precisava sair um pouco para ver se clareava minhas idéias, estava com muita conversa e pouca ação. Saí com o maior cuidado para não me perder, andei devagar pelas principais vias marcando com atenção pontos estratégicos, consegui chegar em Porta Nuova. Tudo era motivo para eu perguntar, meti na minha cabeça que precisava praticar italiano a todo custo, cheguei a entrar em uma agência de empregos para preencher um formulário, passei um tempo consultando meu dicionário, no final faltava alguns dados que não tinha ali e levei comigo o formulário para trazer depois, só consegui trazer de volta o formulário preenchido na outra semana. O lance de entrar naquela agência foi muito importante, abriu minha mente um pouco, mas ainda faltava algo. Naquele dia dei uma volta e voltei para dormir de novo, nunca tinha sentido tanto sono assim.
Eu havia ligado para o Alex mais uma vez e de novo ele não tinha encontrado o responsável, falou que era melhor esperar passar aquela semana e tentar ligar na semana que vem, ele viu que eu não ia dar trégua.
No quarto dia levantei de novo disposto a reagir, precisava lutar contra aquela confusão que dominava minha mente, saí de novo, dessa vez fui na Comune (prefeitura) para transferir minha residência para a Itália, foi terrível, não conseguia me comunicar e no final entendi que tinha de voltar outro dia por algum motivo que desconheço. A tal da língua italiana foi esquisita no começo, tinha horas que parecia ser fácil entendia bem, de repente não dava para decifrar uma única palavra, não sei se dependia do sotaque ou do assunto. Outra coisa que contribuiu para complicar um pouco foi eu ter que falar somente em espanhol com meus novos amigos, já era um idioma diferente do meu e quando me metia a praticar italiano com qualquer um saia espanhol, ou então misturava português com espanhol para me comunicar na rua, foi triste, parecia que não ia resolver aquilo nunca, dava um nó na minha cabeça. Um grande obstáculo que encontrei também foi em me relacionar com algum italiano, pensava e pensava em como conhecer gente para poder conversar e não vinha nada. Só os estrangeiros eram receptivos para conversar, os nativos se limitavam a responder as perguntas que eu inventava, não encontrava nenhuma brecha para fazer amizades.
Na casa ia, aos poucos, me dando conta das pessoas, comecei a perceber que Mercedes e Estela se queixavam muito que as coisas de comer delas sumiam, mas não ligava à pessoa que elas suspeitavam, não percebi, por exemplo, que quando David conversava comigo elas se calavam, até porque no meu primeiro dia todos pareciam bem entrosados, eles conversaram juntos e David até consertou a lâmpada que ficava do lado delas. Acostumei-me com o jeito aparecido da Mercedes de dar aquelas risadas altas e querer dominar o ambiente, acho que ela era burguesa em seu país, tinha um padrão de comportamento que remete a uma filhinha de papai, não me importava ela me caia bem, era uma boa pessoa para mim. No final de semana que as coisas ficaram mais claras, foi quando as duas me disseram de forma direta o que tinha acontecido antes de eu chegar, elas suspeitavam que David fosse a pessoa que roubou um celular da Mertche. Era um problema grave de lá, sempre estava sumindo as coisas, principalmente celulares, como tinha muita gente era fácil um ladrão agir, eu não conhecia um único ali que não tivesse sido vítima, só os donos da casa que ninguém mexia e eu. No meu caso era diferente, eu tinha uma daquelas bolsas que se prende na cintura, era de couro da cor preta com três compartimentos com zíper, tamanho gigante, ali dentro eu colocava tudo o que tinha de valor, meus passaportes, meu pouco dinheiro, meus documentos, meus equipamentos eletrônicos, até os recarregadores, andava para todos os lados com essa bolsa, inclusive dormia com a bolsa na minha cintura. Pode acreditar, não teve uma única vez que perdi contato, não tinha como passarem a mão desse jeito.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

22 – A primeira volta a gente nunca esquece.

A única vez que vi Sanchez lúcido em minha primeira semana foi quando ele veio oferecer um celular usado para eu comprar. E agora? Posso confiar? São aqueles velhos dilemas que nos rodeia como animais famintos. Nunca tive um celular antes, nem sei direito como funcionam, perguntava para todos e falavam que era um bom negócio, o preço pareceu razoável em comparação com a rápida pesquisa que fiz na noite anterior pela vitrine de uma loja deu para ter uma base nos preços. Eu havia saído para ligar para o Alex conforme nós havíamos combinado, usei o cartão que comprei no aeroporto para acessar a internet, ele disse que o responsável pela contratação não apareceu por lá ainda e pediu para ligar no outro dia à noite. Paciência, seguiremos tentando.

Acabei fechando negócio, pedi para esperar eu ir ao banco para sacar dinheiro, Mercedes me levou até o centro comercial ali perto conhecido como Porta Nuova. Aquele dia foi minha primeira volta no meio do povo, de novo não sabia para o que olhar, aqueles prédios antigos, a aparência das pessoas, o número de estrangeiros era impressionante, dava a impressão de que a cidade estava sendo invadida, principalmente, adivinhe por quem? Claro os bolivianos. Eu tenho uma teoria. Das poucas cidades italianas que percorri Bérgamo era a única que notoriamente havia bolivianos em todos lugares, talvez isso ocorra porque os primeiros que por lá apareceram começaram a trazer outros desencadeando uma reação em cadeia, eles só conseguem se relacionar com eles mesmos e têm dificuldade de entender outras culturas, apesar de serem cordiais não são um povo fácil de aturar, é exatamente por isso que quando decidem deixar seu país eles optam ir para um lugar que tenha conhecidos, sempre se via famílias inteiras vivendo ali, tios, primos, irmãos, etc, o que não é comum entre os brasileiros, por exemplo.

A cidade parecia um labirinto, por lá o conceito de quarteirão não faz muito sentido, as ruas são muito tortuosas e pouco interligadas, se errar um caminho para voltar depois se dá uma volta bem grande. Tentei guardar a volta para ver se conseguia recordar depois, que nada, sorte que não estava sozinho porque eu queria ver, não sabia meu endereço e nem sabia como perguntar como chegar lá, eu estaria literalmente perdido. Depois de caminhar uns 15 minutos acabamos em Porta Nuova, que visão linda. No final da avenida tinha uma paisagem maravilhosa que confundia os desavisados, dava a impressão de haver uma segunda cidade suspensa no fundo, causa impacto aquela vista porque não dá para identificar ao certo o que está se vendo, tentei procurar a ladeira que ligava a cidade de cima e só via uma faixa cinzenta rodeando-a, só ficou claro para mim o que eu estava vendo depois que Mertche explicou. Tratava-se da Città Alta ou Cidade Alta de Bérgamo, a faixa cinza é a muralha que a rodeia, a cidade começou lá a mais de quinhentos anos atrás.

Quando cheguei no banco, parecia que eu conseguia sentir que o cartão não ia funcionar no caixa e eu ia ficar sem dinheiro e o pior é que não conseguia ver uma alternativa, sem dinheiro ali eu estaria perdido, antes isso tivesse acontecido. Como não sou infalível o cartão funcionou e pude sacar meu dinheiro normalmente, o caixa do Banco de Guarulhos tinha razão, saiu muito mais barato sacar dinheiro da Itália.

Na volta passamos numa loja de celular para eu comprar um cartão SIM para eu ter uma linha, comprei da operadora Vodafone porque todo mundo que eu conhecia tinha e para enviar SMS saia mais barato, o número que consegui foi o 3471517927 e me acompanhou por dois meses. Finalmente tinha um celular para colocar em meu currículo, só faltava fazer o mesmo.

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

21 – Segunda fase.

O dia mais longo que já tive em minha vida foi aquele que começou na rodoviária de Avaré e só foi terminar em meu “posto letto” em Bérgamo, levou três dias para acabar, nesse espaço aconteceram as coisas mais improváveis e quanta informação que eu fui bombardeado em diferentes idiomas, finalmente consegui dormir, na realidade desmaiei.
Quanto mais eu conversava mais eu via que precisava conversar mais, uma coisa que era obrigatória ter antes de começar a procurar emprego, um celular, senão como que iriam ligar para mim? Outra coisa era um currículo, escrito em italiano. Essas informações eu tive no primeiro dia na conversa com Mercedes, foram abordados rápido e precisava saber mais, por isso no segundo dia achei melhor não fazer nada, e para ser sincero nem tinha forças para fazer algo, fiquei praticamente no quarto conversando com Mercedes de novo, ela tinha todo tempo do mundo, não podia sair dali mesmo, estava naquela situação usando muleta havia um ano, sofreu um acidente feio de motocicleta e quem estava bancando ela era o proprietário da moto, um amigo dela que nunca cheguei a conhecer, também não entendi porque ele a bancava.
A esmagadora maioria dos estrangeiros que vinham para a Europa pensa em passar em média cinco ou seis anos para trabalharem e juntar um bom dinheiro para depois voltar para seus países de origem e viver numa boa, imagine só a frustração de sofrer um acidente lá e ficar impossibilitado de ganhar dinheiro em plena fase do vigor produtivo, é muito frustrante, a Mercedes teve que enfrentar isso, eu sentia muito por ela. Se bem que a situação na Itália estava calamitosa, havia muita gente parada sem conseguir trabalhar por meses e cada vez chegando mais, pelo menos eu não fui o único a deixar meu país iludido. Tem por exemplo a história do Marcos, ele dormia embaixo na sala, eu o conheci no segundo dia. Antes da Itália ele tinha trabalhado nos Estados Unidos, passou vários anos trabalhando lá até ser extraditado de volta para a Bolívia, aprendeu bem inglês, sempre o via conversando com os africanos em inglês. Ele deixou o filho com os pais e saiu de seu país pela segunda vez para poder sustentá-los, começou em Milão, fez alguns bicos por lá e no final se mudou para Bérgamo por causa de uma namorada que o abandonou depois e como não trabalhava havia meses teve que deixar seu passaporte com Jorge como garantia de que um dia iria pagar a estadia. Marcos se demonstrou muito interessado por mim, logo se ofereceu para buscar emprego em uns pontos estratégicos, queria me pagar cervejas, dizia que como eu tinha documento iria conseguir alguma coisa fácil, escutava ele com ressalvas, era muito sério e conversava bem, a pessoa que ele demonstrava ser não era condizente com a situação que ele se encontrava, no começo eu tentava evitá-lo ao máximo e minhas conversas se limitavam ao mais superficial possível, não queria abrir o jogo, afinal estávamos sob o mesmo teto e naquele momento não precisava causar nenhum mal estar para ninguém. Em baixo dormia também o Sanchez, um gordinho só que não conseguia falar com ele, quando não estava dormindo ele estava bêbado, era incrível o Sanchez, a gente conversava e ele, sentado, dormia com um sorriso no rosto, parecia que estava sonhando com algo bom, na primeira semana simplesmente não ouvia a voz dele. Em baixo ainda dormiam um casal de meia-idade, tinham chego naqueles dias, os dois dormiam na sala no meio de mais 3 estranhos, era uma loucura, levei um tempo para aceitar aquilo, o casal só vinham para dormir mesmo, passavam o dia procurando trabalho, não sei se conseguiram, demonstravam vontade, eram os únicos. Finalmente tinha a Maristela. À noite eles estendiam colchão pelo chão do piso de baixo para dormir, era difícil de ir ao banheiro, e ocupavam os dois sofás como cama também. Consegui conversar com todos e peguei várias dicas importantes, estavam vendo um celular para eu comprar, Marcos queria me levar para fazer meu currículo, as coisas estavam caminhando bem.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

20 – Aclimatação.

Eu costumo classificar em cinco as etapas para se chegar à integração total dentro de qualquer grupo social para a convivência diária. A primeira é a apresentação, onde tomamos conhecimento dos nomes e traçamos um perfil superficial das pessoas, dependendo da pessoa podem durar apenas alguns minutos, em seguida passamos ao aprofundamento, onde tomamos mais tempo para conhecer melhor os detalhes de cada um e preencher lacunas sobre o perfil inicial, eu acredito que para se almejar uma integração sólida no grupo essa parte deveria levar alguns dias. A melhor parte vem na terceira fase, eu chamo de lua-de-mel, após o aprofundamento nas conversas acabamos por conhecer mais a melhor parte de cada um, geralmente nos identificamos com a maioria e tudo vai às mil maravilhas, é só risadas, troca de elogios, todo mundo se sente íntimo, é a fase que deveríamos fazer o possível para durar, porém vem a quarta etapa, não conseguimos esconder nossos defeitos por muito tempo e eles fatalmente acabam aflorando no decorrer do relacionamento, felizmente, para a maioria, se consegue passar por ela com poucas baixas, um ou outro acabam te irritando ou irritado com você, mas é muito difícil chegar ao ponto da intolerância. A última parte é quando entramos na rotina, todos já conhecem os limites e a vida é levada sem sobressaltos. Simples assim e funciona para 90% da população e como comigo não poderia ser diferente passei à segunda fase com Mercedes, ela sentou-se em sua cama e passamos a conversar, ela me perguntava muitas coisas e eu sempre preferi ouvir a falar.
Conversamos sobre minha cidade, sobre os peruanos, ela dizia que não se podia confiar neles, eram falsos; sobre a Marina, um monte de coisas. Acredito que ficamos a sós conversando no quarto por horas, o clima estava bem calmo e a idéia inicial que eu tinha sobre ela não parecia muito fora. Precisava dormir e quando pensei que iria conseguir subiu o senhor que estava bêbado lá embaixo, o Conan, e junto com ele mais um casal de baixinhos, eram os ocupantes da última cama que faltava, a que fica encostada na parede da porta, David e Sandra. Um detalhe que creio ser relevante é que as quatro camas do quarto eram de solteiro, e duas delas era ocupada por duas pessoas! Já tentei dormir em cama de solteiro com minha esposa algumas vezes e não foi nem um pouco confortável.
Quando os três subiram mais Lica, a filhinha dos donos da casa, Mercedes se transformou, começou a brincar com Conan e soltava umas gargalhadas altas, eu não sabia o que se tratava, mas pareciam se divertir, o pobre do Conan nem sabia o que estava fazendo de tão grogue, soltava umas palavras sem sentido e todos caiam na gargalhada, nem eu resisti, no final ele não agüentou e desmaiou, Mercedes ficou sem seu motivo para continuar o barulho e se aquietou um pouco, aí entrou em cena David, rapaz carismático, tinha 22 anos de idade, mas parecia um garoto de 16 anos, sorriso fácil, falava bem, tinha um dom natural de conquistar as pessoas, aprendi umas coisinhas importante com ele no decorrer de nossa convivência, depois de um tempo conversando já me ofereceu o celular para eu ligar para o Brasil, não me senti à vontade de aceitar, ele insistiu e disse que pelo menos um SMS eu deveria enviar, enviei então uma mensagem para o celular do meu pai, não custava nada para ele aquele gesto que para mim foi muito importante e rendeu-lhe um sentimento de gratidão da minha parte.
Um tempo depois subiu Estela, a que divide a cama com Mercedes, ela estava na casa de uns amigos, então foi a vez dela conhecer o forasteiro e mais novo integrante do quarto, mas Estela era muito tímida, não perguntava quase nada, só ficava ali com aquele sorriso característico dela. A timidez dela dava margem para outras interpretações, porque ela tinha um sorrisinho de sem vergonha, ela não era, só parecia, pobre Estela. Outro dia perguntei porque ela tinha que dormir grudada com Mercedes. Era porque uma vez o Conan estava bêbado e começou a molestá-la.
Naquela noite subiu mais uma pessoa, ela dormia na sala embaixo, a Maristela, uma garota gorda, era nova, mas por ser obesa parecia ter muito mais, boa pessoa também, ficou um pouco ali para dar uma olhada e logo desceu, amanhã seria dia de trabalhar e costumava-se dormir cedo ali no quarto.

terça-feira, 19 de setembro de 2006

19 – 6,6 m² por pessoa.

A parte de cima é mais parecida com um sótão, todo de madeira, assoalho e teto, sendo que o teto acompanha o caimento do telhado com aberturas em cima, como respiradouros. A casa foi projetada para ter apenas um quarto para um casal, na parte que dá na escada deveria ser uma sala reservada, deveria, Maria e seu marido, Jorge, colocaram um cobertor para servir de parede e transformar em um quarto improvisado, criava-se um corredor até o quarto de casal, mais ao fundo, que agora é ocupado por seis pessoas incluindo eu. No diminuto espaço que os donos da casa ocupam ainda ficavam os dois filhos do casal, Jorgito, o mais velho, tinha doze anos e Lica que tinha nove anos, uns amores de crianças, muito inteligentes, educados e independentes, era curioso como aquelas duas crianças são criados no meio de tanta gente. Fora as dez pessoas que ocupam o andar de cima tinha mais os que ocupavam no andar de baixo, eles transformavam a sala em dormitório à noite, quando cheguei na casa eram cinco pessoas embaixo, esse número mudava um pouco, mas a média girou em torno de quinze pessoas vivendo na casa durante o tempo que estive lá, só que o lugar foi construído para um casal no máximo.
Conheci a minha cama, ficava logo de frente para a porta apontando para a mesma, eu me deitava com a cabeça direcionada para a parede e os pés para o corredor, no meu lado direito ficava meu armário que eu dividia com um outro integrante do quarto, aquele senhor que estava debruçado de bêbado na mesa logo que cheguei, seu apelido era Conan, o Bárbaro, do meu lado esquerdo ficavam as outras três camas que compunham o quarto, todas elas apontando para a parede que ficava à minha direita, o Conan ocupava a cama do meio. O ocupante anterior da minha cama era um rapaz que se mudou para Milão, ele encontrou um emprego por lá, eu não o conheci. Ninguém ali jamais havia vivido com alguém diferente de boliviano antes, talvez contasse alguns pontos ao meu favor, pois eu acabava sendo bem assediado pelas pessoas, tinham muitas curiosidades.
Maria trocou o lençol e cobertor e apresentou o meu espaço, depois ela desceu para buscar o meu prato da janta. Estava contente com meu “posto letto” porque para mim era o melhor lugar possível que eu achava na casa, eu tinha minha própria passagem particular para me locomover sem ficar trombando com os demais, ficava localizado entre minha cama e o armário do meu lado direito e sobrou até um criado mudo para eu usar, além da tomada exclusiva bem na minha cabeceira.
Pude finalmente sentir uma cama depois de dois dias de pura movimentação sem me deitar direito, até a dor no meu ombro direito parecia doer melhor, a primeira coisa que me veio na memória ali deitado foi minha esposa, quantas mudanças que nós fizemos juntos e sempre na hora de descansar eu repousava sua cabeça em meu ombro e a abraçava, ela sempre esteve presente nas horas de vivenciar coisas novas e dessa vez eu estava sozinho, como em meus tempos de adolescência, parecia que eu estava num sonho estranho em que as coisas não faziam muito sentido.
Maria volta com meu prato, era um frango cozido de cor pálida e sem tempero e um arroz bem papa, como estava com fome não consigo me lembrar se estava bom ou ruim, só sei que comi tudo. Na Itália eu conheci bem muitas coisas sobre a Bolívia e seu povo e posso garantir que a culinária não era uma das especialidades deles, não conheciam tempero e o repertório é muito limitado.
Quando terminei de comer percebo que alguém está subindo a escada bem espaçadamente, fico curioso, era a Mercedes com suas muletas, ela ocupava a cama encostada na parede oposta à entrada do quarto, essa cama era repartida com outra garota, a Estela. Dizem que a primeira impressão é a que fica, quando vi Mercedes pela primeira vez ela me pareceu humilde, simples, meio calada e um pouco tímida, tinha um ligeiro toque de feiura, era um rosto exótico por assim dizer. Essa foi minha primeira impressão de Mertche, como era conhecida.

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

18 – Um lugar pra ficar.

Via G. Quarenghi (lê-se Quarengui) era vulgarmente conhecido como o Bronx de Bérgamo, não podia deixar de ser, fui aparecer lá justo no feriado onde a rua estava cheia de gente bebendo e conversando, ficavam em grupos como se fossem gangues, os integrantes das rodinhas eram provenientes da África. Aquela rua era tão visada que sempre tinha batida dos carabinieris ali, eles fechavam a rua e revistavam todo mundo que parecesse suspeito, ou seja, quase todo mundo. Confesso que o meu choque não foi proporcional com a realidade, talvez porque fosse a primeira vez que eu estivesse fora do aeroporto e pensava que o cenário na Europa tivesse mudado radicalmente. Nem sei direito no que pensei, encarei com relativa naturalidade tudo.
Paramos no número 48, só a Marina desceu e falou para andarmos rápido, desci rapidamente minhas duas malas e saí correndo atrás dela, nem deu para dizer tchau aos demais, mal sabia eu de que aquela seria a última vez que os veria.
O local ficava localizado no centro da cidade. Nessas regiões urbanas da Europa principalmente as pessoas costumam viver em prédios como num condomínio, os prédios eram em média de três andares. Para mim viviam amontoados. Privacidade quase zero, as pessoas que vivem ali todos juntos num mesmo prédio mal se conheciam, nem cordialidade se encontra uns com os outros, para piorar, cada um falava um idioma diferente, no meu prédio, por exemplo, se encontravam bolivianos, africanos, italianos, turcos e somalianos, esses foram os que eu soube, mas vira e mexe pintava gente diferente, a rotatividade era alta ali.
Entramos no apartamento 11, parecia ter havido uma festa de arromba, a entrada é entre a sala e a cozinha que na prática são um só, do lado esquerdo ficava o sofá e acompanhando o fim das poltronas, no lado oposto à entrada, está a porta do banheiro e área de serviço. Do lado direito à entrada estava a mesa cheia de garrafas de cerveja vazias, um senhor velhinho caído de bêbado debruçado sobre a mesa e oposto ao velhinho, do outro lado da mesa um gordinho com cara de índio boliviano com mais uns jovens rapazes e outro senhor, logo em seguida, bem no canto direito da parte de baixo se encontra a escada encaracolada que ia dar em cima, do lado estava o fogão e a pia e finalmente, em frente à entrada haviam duas portas que ligavam com o pátio de fora do primeiro andar, a Marina estava com uma senhora e uma moça com duas muletas na porta mais à minha direita que liga ao pátio, ela me chama.
– Fabriciu essa é Maria a dona deste apartamento.
– Prazer.
– E esta é a Mercedes minha nora.
– Ah é? Legal. Prazer.
– Olha só, ela tem uma vaga aqui o valor mensal é cento e cinqüenta euros, você tem o dinheiro aí?
– Claro, está aqui.
Saquei o dinheiro, contei duas vezes conferindo as notas e entreguei-as para Maria, deu um medo de entregar assim sem nem olhar o lugar que eu ia ficar e sem saber direito o que estava acontecendo, naquela altura eu já tinha dado conta de que havia entendido tudo errado e o que tinha presenciado até ali não foi nem um pouco estimulador. Estava no meio de um monte de bolivianos, sendo que a metade era de bêbados, num ambiente degradante. Que outra saída eu teria? O que poderia ser pior do que ficar na rua sem um teto para dormir? Como sempre eu não tinha nada a perder, bem podia perder cento e cinqüenta euros, mas valia o risco.
– O Fabriciu tem cidadania italiana, com passaporte e tudo.
– Ah é? Nossa que interessante.
Então peguei meu passaporte para mostrar a todas, estava preocupado em demonstrar que eu falava a verdade e não inventava histórias. Maria fala empolgada cochichando.
– Nossa! É passaporte italiano! O meu marido estava atrás de alguém com documentos para a firma que ele trabalha e ele não encontrou.
– Com documentos será fácil encontrar emprego. – Disse Marina.
Eu já fiquei confiante, pensei que iria poder escolher onde trabalhar. Marina conversou sobre algumas coisas particulares, se despediu de todos e saiu apressada.
– Vou te mostrar a sua cama Fabriciu. Você gostaria de comer algo?
– Ah sim obrigado.Lembrei-me que não havia comido nada desde aquele lanche que o André me trouxe na noite anterior e por incrível que pareça não estava nem um pouco com fome. Maria passa à frente e eu a sigo para o andar de cima, a Mercedes continua na varanda, era uma varanda ampla. Tive que passar pelos bolivianos bêbados de novo, nem sabia o que dizer a eles. Tinha que demonstrar confiança sem vacilar, naturalidade, felizmente eles não pareciam preocupados com a minha presença, estavam distraídos conversando, só dei um sorriso e subi para conhecer o meu canto, estava curioso para saber como era, se fosse para tomar como base a parte de baixo eu poderia imaginar como seria. Estava escurecendo à medida que subia e era difícil levar minhas malas por aquela escada encaracolada, estava vencendo os últimos degraus.

sábado, 16 de setembro de 2006

17 – Adeus carrinho.


Fomos para o estacionamento do aeroporto. Segundo dia na Itália e eu já vou andar de carro com amigos? Legal, foi melhor ainda, era uma caminhonete bem possante cabina dupla, joguei minhas malas atrás e subimos. Eu fui no canto do lado de trás do motorista, a garota no meio e o pretendente no outro canto, ele estava todo tímido e ela então, coitada, nem demonstrava nenhum tipo de expressão, estava indecifrável. Eu me dei conta de que a garota havia ido para se casar porque Marina perguntou para seu cunhado já no carro:
– E aí cunhado, o que você achou dela? Tá gostando?
– É estamos nos conhecendo, vai ser muito bom.
Ele respondeu embaraçado e timidamente sorridente e ela normal como que não estivesse entendendo nada.
O marido de Marina me disse que pagou por volta de sessenta mil euros naquela caminhonete. Eles trabalham com limpeza pesada, quando edifícios são reformados ou construídos, são eles que entram em cena para acabar com a bagunça. Eles não moram na cidade e sim nas montanhas, não sei bem como é isso porque infelizmente não tive o prazer de conhecer a casa deles, nem sequer cheguei perto de tais montanhas, só ouvia falar muito no lugar onde fiquei.
Saímos do aeroporto e caímos direto numa auto-estrada, foi uma emoção conhecer as estradas e o trânsito italiano, é sempre bom poder conhecer coisas novas, minha antena ficou alerta, eu não queria perder nada, estávamos em alta velocidade. O trânsito é muito intenso nas estradas, muito carro mesmo, mais do que na rodovia Anhaguera em horário de pico, por exemplo, e cada carrão, tá certo que de vez em quando se via algum esboço de sucata circulando, mas é muito raro, fiz questão de procurar uma e cruzamos com duas, mesmo assim não chega aos pés das sucatas brasileiras. Tinha muita indústria também, eram empresas enfileiradas e muitas linhas de trem.
Andamos bastante e comecei a desconfiar que alguma coisa estava errada, não era para já estarmos avistando Milão? Para onde estamos indo? Lembrei-me de uma conversa que tive com um grupo de 15 jovens bolivianos naquela manhã em Malpensa, eles estavam vivendo a quatro horas e meia de trem mais ao sul da Itália, esqueci o nome da cidade, estavam chocados, não me explicaram o que havia acontecido, era algo grave, oravam muito e pareciam que estavam voltando precipitadamente, eles me contaram que moravam todos juntos em uma mesma casa, daí comecei a juntar as coisas e desconfiei que eu não tinha entendido alguma coisa na conversa com Marina, de qualquer forma vamos deixar correr para ver no que vai dar, eu não tenho nada a perder e motivos para desconfiar não havia, dá para perceber a intenção das pessoas quando não é boa e definitivamente não era o caso deles, não posso negar que cogitei algum complô, mas não fazia sentido e por isso logo relaxei.

Aquela região da Itália é muito densa, era difícil separar cidade do resto, para todos os lados que se olhava havia edifícios, movimento, gente, quando eu percebi já estávamos transitando na rua com lojas, parecia que estávamos chegando. Acho que fiquei tanto mentalizando estrada e tudo que envolve esse contexto que esqueci de identificar a cidade, quando cai na real mesmo estávamos numa rua de paralelepípedo! Foi esse contraste que me trouxe para a realidade, asfalto versus paralelepípedo, aí percebi o novo cenário, só que alguma coisa não se encaixava, parecia que eu estava na África! Eram gangues africanas que haviam dominado as ruas? Onde estou afinal?

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

16 – Bérgamo.

O meu plano era me estabelecer em Milão e até aquele momento eu ainda achava que estava nos limites da cidade, é aquela velha história de não pesquisar adequadamente as coisas que deveriam ser vistos com antecedência.
Fui para o portão de desembarque no horário que o avião do Brasil iria chegar, já havia várias pessoas esperando, a esmagadora maioria de brasileiros, me posicionei em pé como se estivesse esperando também e fiquei escutando, observando, regularmente mudava de posição, mas não encontrava alguém que inspirasse confiança para conversar, apareceu um cara tipo Drag Queen que me encarou, nem parecia brasileiro, mas sem querer eu disse oi e ele respondeu com simpatia, tratei de sair de fininho, estava precisando de uma ajuda, mas não estava desesperado. O tempo ia passando e nenhum sinal, não fazia idéia de quanto tempo mais eu tinha, parecia que faltava pouco para os passageiros aparecerem. Não tem importância, na realidade estava contando com o serviço que o Alex me prometeu, e segundo isso eu tinha mais duas oportunidades, no mínimo, de voltar naquele ponto de novo. O número de pessoas começou a aumentar mais ainda, então comecei a transitar no meio delas com meu carrinho para lá e para cá, de repente vejo dois homens encostados na grade que delimita o corredor de saída do portão, tive um forte pressentimento sobre eles, pareciam brasileiros, um deles tinha bigode e era magro, o outro era gordo, mas lembrava um pouco o magro. Pensei.
“– São eles mesmo que eu vou chegar”.
– Oi! Vocês são brasileiros?
Eles olharam confusos, não estavam me entendendo.
– No, no, noi siamo italiani. Aspeta.
Foi então que olho para o lado e vejo pela primeira vez a face da minha salvadora. Sorridente, simpática, alegre. Seu nome é Marina, uma boliviana. Os dois pedem para eu conversar com ela.
– Oi! Você é brasileira?
– Não, eu vivi no Brasil por 10 anos, trabalhando lá, já faz um bom tempo. Eu sou da Bolívia.
Ela me respondeu em um português sofrível.
– Podemos falar em espanhol se preferir, vivi no México durante um.
– Sim é melhor para mim.
Começamos a conversar. O senhor de bigode era o marido dela e o gordo seu cunhado, ambos italianos, esperava uma sobrinha que vinha da Bolívia e fez escala no Brasil, ela estava vindo para se casar com seu cunhado e era a primeira vez que os dois iam se ver. Não perdi tempo, deixei Marina a par de minha situação, conversamos muito, ela se pôs a ajudar, me falou da casa de uns amigos muito próximo dela e coincidentemente havia liberado uma vaga lá na casa, imediatamente saca o celular e liga para sua amiga.
– Alô, Maria? É Marina.
– Aquela vaga ainda está livre?
– Jorge é quem sabe?
– Você pode perguntar a ele?
– Está bem, eu espero.
– Tudo bem.
– Não se esquece tá? É um favor muito especial para mim.
– Sim é um rapaz muito bom.
– Está bem, até mais.
Fiquei na expectativa, quase roendo as unhas, tentava imaginar o que estavam falando do outro lado. Marina desliga e vira para mim.
– A Maria só vai confirmar com o marido, mas eu tenho certeza que está livre. Lá você vai ter uma cama, um espaço para cozinhar, não é muito, mas está bom, eles vão cobrar cento e cinqüenta euros por mês por isso.
– Tudo bem.
Respondi animado. Por esse valor eu ficaria apenas dez dias naquele albergue para estudantes que aquele senhor me indicou na noite anterior, isso se eu encontrasse vaga. Estava ótimo, além disso, ficar naquelas condições que eu me encontrava largado em um país estranho com tudo diferente e sem ninguém para contar não era do jeito que eu idealizava no Brasil, eu precisava cuidar da minha mente, precisava ter o mínimo de condições para encarar uma jornada de buscar emprego. Marina me explicou como eu devia fazer para chegar lá, disse que ficava em Bérgamo, até então eu acreditava que era um bairro de Milão, as denominações de cidades e regiões são um pouco diferentes, tanto na Bolívia como na Itália e eu acho que Marina misturou as duas e me confundiu tudo, além disso, ela me contava sobre outros assuntos, sobre como conseguir ajuda, foram muitas informações que me passava alternadamente, eu anotava tudo o que me dizia, quando ela falava em pegar um ônibus eu ficava mentalizando ônibus circular e bairros, até o nome Bérgamo eu anotei errado, anotei o nome de um distrito de Bérgamo, que catástrofe! Seria...
O portão se abre e começa a vir os passageiros, todos começam a procurar as pessoas que estavam esperando, e nada da sobrinha da Marina. Vem um carabinieri (polícia italiana) com uma garota do lado apontando para Marina e chama-a para entrar lá dentro, ela vai preocupada e eu fico fora esperando com os dois homens, demoram um tempo lá dentro, então o marido de Marina entra também para ver o que acontecia, depois de um tempo eles voltam com a garota junto, era a sobrinha e pretendente do cunhado. Marina estava possessa de raiva, não deu para entender direito por que começaram a falar em italiano muito rápido, parecia o carabinieri estava querendo enviar a garota de volta. Para provar que as coisas não só conspiram contra a gente, o marido de Marina, gentilmente se ofereceu de me levar para Bérgamo, foi a minha sorte, se eu tivesse ido seguindo o roteiro que fui anotando eu jamais chegaria ao lugar, foram tantas informações que me foi passado em tão pouco tempo que fiquei todo confuso. No meio da conversa a Marina me falou de um padre que ajuda aos imigrantes em um distrito de Bérgamo chamado Mochos, foi essa parte que mais me confundiu, por isso havia achado que eu iria para um bairro de Milão e acabei anotando Mochos e pensava que ia ficar em um instituto ligado à igreja. Nossa! Foram tantas projeções que fui montando que conclui erroneamente isso e estava com uma corrida contra o tempo que não me permitia ficar fazendo perguntas e nem seria muito agradável. Numa situação nova, é fundamental saber identificar e se inteirar das coisas realmente relevantes, criando a imagem do que se pretende alcançar e garantir com toda certeza que o que foi imaginado corresponde à realidade. Essa foi uma lição de ouro que consegui extrair.

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

15 – O dia seguinte.

Se eu tivesse planejado não ia dar certo, feriado em toda a Itália. O que eu tinha planejado durante toda a noite já não servia para mais nada com essa novidade tardia que me inteirei, o dilema persistia em voltar, estava perdido, passava mais uma noite em Malpensa e estudava minhas opções aqui ou ia para a cidade que nem imagino como é e tentava ter alguma idéia por lá? A melhor solução que eu conheço quando se está sem uma solução é parar com tudo e se distrair, por isso fui caminhar, dar uma volta por aí. Fui no terminal de trem que fica ao lado, desci lá embaixo pela escada rolante e com meu carrinho onde se embarca e logo percebi que não existia catracas ou qualquer sistema para verificar se as pessoas pagavam o bilhete, interessante, se colocam isso no Brasil a companhia vai à falência, todo mundo ia querer viajar sem pagar. Logo vi um carrinho abandonado sem ninguém por perto, na mesma hora agarrei-o e levei até o lugar que se devolve o mesmo e se recupera o um euro depositado.

– Que boa idéia, eu posso gastar o meu dia buscando carrinhos abandonados nos pontos estratégicos como no embarque de trem, no portão de entrada para pegar o avião e lá fora no estacionamento, não custa tentar.
Pensei comigo. Fiquei enrolando um tempo no pátio da estação de trem e logo uma garota apressada abandona outro carrinho, lá vou eu de novo, mais um euro no meu bolso.
– Se eu tiver que passar mais um dia aqui que seja bem aproveitado.
Fiquei mais um tempo por ali, mas não apareceu mais nada até que cansei e subi para o aeroporto de novo. Sempre estava cruzando com as garotas da faxina que vi reunidas antes do turno delas começarem no lugar onde passei a noite, fiquei observando tanto elas que me lembrava do rosto de cada uma.
Todo o tempo que estive em Malpensa eu tinha como companheiro o meu carrinho, que encontrei na noite anterior, e com minhas malas em cima, a sensação de estar sozinho parece induzir a gente a personificar o carrinho e a tentação para ter um laço afetivo com um objeto é grande, não que tenha acontecido comigo, mas eu senti que isso pode ser possível facilmente dependendo do grau de vulnerabilidade da pessoa.
Passei lá fora no embarque dos ônibus e encontrei mais um carrinho dando sopa, na realidade tinha encontrado dois, mas um deles outro rapaz foi mais rápido do que eu. Foi lá fora que conheci um Salvadorenho, seu nome é Alex, antes eu cheguei à outra pessoa e perguntei por trabalho, nem sabia como se dizia trabalho (lavoro) em italiano, ele não me entendia e perguntou se eu falava espanhol, confirmei e foi aí que ele chamou o colega de trabalho dele o Alex, lembre-se desse nome que ele será o causador de uma jornada à parte. Alex trabalhava para uma companhia de ônibus de Varese, essa sim a cidade na qual o aeroporto de Malpensa pertence, só não sei se ele era motorista ou o cobrador, parecia cobrador, me pareceu muito atencioso, pra variar todo mundo pra mim, com exceção daquela gorda, era atencioso. Bem, de imediato ele falou que onde trabalhava tinha uma vaga, mas a pessoa tinha que saber dirigir ônibus, não precisava de carteira de motorista era só para manobrar os ônibus no estacionamento para lavá-los. Eu nunca tinha sequer pego na direção de um, mas disse que sabia dirigir sim, afinal não deve ser muito diferente de guiar uma caminhonete essas coisas a gente pega rápido. Então ele me pediu um telefone e como eu não tinha me passou o dele e me pediu para ligar na noite do dia seguinte quando terá conversado com as pessoas responsáveis pela contratação. Tudo bem, passar mais duas noites no aeroporto já não pareceu tão difícil com um trabalho em vista praticamente garantido.
– Não seja tão ingênuo, como que você, nessa altura da vida pode contar com um ovo dentro da galinha, esse é o erro mais básico que alguém pode cometer!
Tá certo, ainda não andei o suficiente para me distrair. Subi para o saguão superior de embarque e check in atrás de mais carrinhos, pensava em como poderia abordar alguma pessoa para praticar italiano, não conseguia vê-los receptivos, não inspiravam confiança de serem abordadas, todos pareciam ocupados e com pressa. Rodei até que passei por uma parte lá de cima onde ficam os escritórios das companhias aéreas e tinha tipo de uns sofás que dava para se deitar melhor, vi algumas pessoas dormindo ali e me deitei também, consegui dormir um bom tempo na companhia de um monte de gente, ali parecia funcionar como um dormitório. Eu sempre que ia dormir amarrava as minhas duas malas com a alça na minha perna e puxava para bem perto de mim por precaução, ali não era o Brasil, mas nunca se sabe né?
Depois de um tempo desci de novo até a estação do trem para recomeçar a minha caça pelos carrinhos perdidos e dessa vez fui mais abaixo até o estacionamento coberto da estação para dar uma olhada nos carros, eram todos diferentes do que se via no Brasil, muito bonitos de se ver, tinha carros para alugar ali embaixo. Aquele era também o dia das novidades, tudo era novo, a vantagem é que ajuda a distrair um pouco desviando a preocupação. Fiz todo o percurso de novo e parecia que os carrinhos haviam desaparecidos, não se encontravam mais nenhum. No saguão de desembarque havia uma multidão, eram as pessoas esperando a chegada de outro avião qualquer, foi quando me veio o estalo.
– E se eu fosse ali na hora que um avião do Brasil estiver chegando? De repente eu poderia encontrar alguém que me desse algum tipo de auxílio, uma dica, sei lá.
Não custava tentar. Informei-me do horário do vôo da Varig vindo do Brasil e esperei. É muito bom ter um plano para ocupar o tempo, você pode concentrar seus esforços nele se desligando dos problemas, isso é vantajoso principalmente quando não se tem muita opção.

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

14 - Uma longa noite.

Depois daquele episódio com o André nós paramos de conversar um pouco e também ele teve que se deslocar para outra área do aeroporto com uma máquina de limpeza para continuar o seu serviço.
Eu resolvi dar mais uma geral pelo aeroporto, procurando alguém ou alguma coisa que pudesse me ajudar, era muito tarde e tudo estava praticamente parado, então tratei de procurar um canto para passar a noite e o lugar mais calmo com pouco movimento ali era justamente os bancos que ficam em frente ao banheiro e onde as comissárias de bordo da Varig estavam esperando a van no saguão de desembarque. Aqueles bancos pareciam ter sido projetados justamente para evitar que as pessoas se deitassem, era difícil encontrar uma posição, mas o tempo foi passando e o sono apertando até que ficou fácil dormir de qualquer jeito, na realidade tirava alguns cochilos e sempre que despertava a primeira coisa que eu via era uma foto gigante bem no alto da parede ao lado da entrada do corredor que vai dar no estacionamento, era de uma mulher em primeiro plano chacoalhando as mãos e ao fundo se via um índio e outros tipos de gente de certo representando os diferentes tipos de tribos no mundo moderno, pareciam estar participando de algum ritual musical, era um painel interessante de se ver. Um tempo depois o André voltou, trocamos algumas palavras, ele me perguntou se estava tudo bem e foi conversar com os colegas, era outra hora de folga. Ele sempre passava por ali de vez em quando.
Durante a noite eu fiquei imaginando por quanto tempo eu agüentaria dormir mal daquele jeito, talvez eu me acostumasse e já na terceira noite dormiria que nem uma pedra. Pensei em como vai ser no outro dia para andar por aí procurando emprego e pior, sem falar nada de italiano, deu para sentir muito bem como é se comunicar ali, se com o André que teve paciência comigo não foi fácil imagine com as pessoas que não gostam de perder tempo, cheguei a cogitar a hipótese de ficar um tempo ali no aeroporto conversando com as pessoas para ver se eu pegava as palavras chaves para pedir emprego e só depois fosse para a cidade, provavelmente Milão, bem até aquele momento, para mim, eu já estava em Milão. Tantas coisas que comecei a pensar ali e que eu poderia ter visto no Brasil, o que custava estudar as palavras chaves para se pedir emprego em italiano? O que custava ver onde ficava o aeroporto internacional para a Itália? O que custava me informar sobre a economia italiana? Essa parte pula, porque se eu soubesse viria do mesmo jeito. Muitas outras questões foram surgindo.
– Não, eu não posso ficar enrolando, tenho que agir.
Pensei comigo. Nisso surge uma mulher e se senta perto de onde estou para passar o restinho da madrugada, não pensei em outra coisa, comecei a bolar uma desculpa para abordá-la. Consegui falar alguma coisa e começamos a conversar, seu nome é Nina e ela trabalha como doméstica na Itália a mais de 16 anos, seu país de origem é Latvia, um país do leste europeu, pelo menos foi isso que eu entendi. Ela estava esperando seu vôo para ir visitar sua família depois de 16 anos sem vê-los! Não era muito de palavras e só falava se eu perguntava alguma coisa, mas no final ela se despediu de mim com alegria desejando-me sorte.
Aos poucos o movimento foi aumentando e a turma da limpeza do novo turno começaram a se reunir nos bancos onde eu estava instalado, esperando dar a hora de começarem o trampo, eram só garotas, uma tropa quatro vezes maior que o pessoal do turno da noite. O André veio se despedir de mim e foi então que descobri que justo naquele dia era feriado na Itália! Que droga! Quando eu tinha decidido a agir vem uma notícia dessas para jogar um balde de água fria, gastei uma noite inteira para tomar essa decisão à toa.
– Vou passar mais essa noite aqui então.
– Você vai ficar mais uma noite aqui?
– Sim.
– Não! Vá descansar, você precisa.
– Vou pensar, mas é mais provável que a gente se encontre essa noite de novo.
– Bem, de qualquer forma até mais ver.
Como se eu tivesse muitas opções. Fiquei observando as garotas conversarem, o modo como se vestiam, o senso de humor, involuntariamente estudava cada movimento de cada uma delas, tentando tirar informações de comportamento, para eu evitar eventualmente cometer alguma gafe ou agir de modo estranho, eu deveria evitar as encrencas. Uma hora elas se levantaram e cada uma foi para um lado. Eu também não tinha mais nada que fazer ali, o aeroporto já estava a pleno vapor e eu precisava fazer alguma coisa de útil, pensar para ver se surgia alguma idéia brilhante que aliviasse a minha situação, definitivamente passar a noite como essa última não estava parecendo um bom caminho a tomar.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

13 – Conheçam...

Conheçam André, um italiano de sangue. André é um dos faxineiros de Malpensa, ele trabalha todos os dias durante toda noite, entra às 10 horas da noite e termina por volta das 6 horas da manhã do outro dia, um rapaz por volta de 30 anos, gordo, cabelos compridos e meio ondulados, uma aparência levemente bizarra com brincos, piercing e tatuagens, eu já vi algum filme cujo serial kiler lembrava bastante ele. André vive sozinho.

Eu sabia que tinha visto uma tomada em algum lugar, foi no banheiro, claro aonde mais as pessoas que vem de várias partes do mundo precisariam de tomadas de vários padrões para usar barbeador elétrico, secadores de cabelo, carregar celular? Instalei-me com meu carrinho perto da tomada, saquei o recarregador e me sentei ali mesmo para esperar, o manual recomenda 3 horas carregando, para maximizar o uso fiz tudo o que tinha de fazer com o palm, atualizei o meu diário que tinha começado no dia anterior, joguei um pouco, ouvi música, enquanto isso o pessoal da limpeza ia e vinha toda hora, não reparei bem porque, mas acho que o almoxarifado era por ali. Então numa daquelas vinda puxei conversa com o André, rapaz muito atencioso, ele falava italiano e eu tentava falar "italuguês" (bem parecido com portunhol), com auxílio de um dicionário português-italiano que eu tinha instalado em meu palm, a gente se comunicou muito bem, o André era paciente, era como eu imaginava que os italianos fossem. Expliquei a ele a minha situação, o que tinha vindo fazer na Itália e que tinha que correr para trazer logo minha família. Numa certa altura ele me ofereceu um café, aceitei e ele foi buscar para mim, ele me apresentou ao seu "capo" ou chefe, me pareceu legal também. O André sempre ia e vinha e a gente ia conversando, ou pelo menos tentava se comunicar. Parecia dar certo. Depois, em outra volta dele, trouxe-me um sanduíche. Pensei comigo "como as aparências enganam, sujeito se parece com um maloqueiro rebelde com uns trejeitos estranhos e se demonstra bem diferente do perfil que eu imaginei, como a gente se engana".

Estava concluindo as três horas que eu estava lá no banheiro e coincidentemente veio a hora do primeiro intervalo do André, ele me convidou para ir conhecer um lugar apontando para o corredor lateral que vai dar no estacionamento, então fomos até lá, tinha uma longa noite pela frente mesmo e tinha que matar o tempo. Andamos através do corredor, vi o banco que eu tinha arrastado, continuava lá, viramos para a direita quase em frente ao banco, deu em um corredor estreito e entramos dentro de um dos prédios, andamos mais um pouco e encontramos um elevador, subimos até o primeiro andar e continuamos até o final do corredor de cima que terminou em uma espécie de sala de espera com duas máquinas, daquelas que se coloca moeda, cada uma em um lado da porta que entramos, uma era a máquina de refrigerante e a outra era a máquina de lanches. Fizemos todo o percurso calado e não se via ninguém, estava tudo deserto, já era mais de meia-noite. O André perguntou o que eu queria escolhi uma coca-cola, ele enfiou tipo de uma chave na máquina, parecia um pen-drive, e selecionou a opção, saiu uma latinha bem pequena de coca, era a primeira vez que vi daquele tamanho, comentei com ele. Achei que o André estava mais calado eu tentava puxar conversar, o mais importante para mim era não desperdiçar uma chance de praticar e aprender italiano, o que me lembro bem e não entendia na época era que no dicionário a tradução para você em italiano estava "lei", então sempre me referia a ele assim, e ele falava em italiano. –No bisogna chiamare a me cosi! – Bem, eu não entendia o que ele estava dizendo, óbvio, de repente eu poderia estar xingando-o porque "lei" também significa ela, fiquei na dúvida. Na realidade se usa esse termo para se referir a pessoas mais velhas, não existe um equivalente em português, é a mesma coisa de "usted" em espanhol que tem a mesma função. Foi um detalhe que ficou marcado. Estávamos nós dois naquele ambiente deserto, tudo muito quieto não me sentia à vontade, tentava puxar assuntos e ele só ficava me olhando, até que perguntei se ele tinha filhos, ele respondeu mais ou menos assim traduzindo para o que eu achava em português:

– Não, eu não poderia fazer isso.

Pensei que era por causa de uma doença grave ou algo assim, pois me disse com um jeito tão triste. Fiquei curioso.

– Porque não?

– Eu não consigo sentir nada pelas mulheres, sou defeituoso.

Daí me baixou o espírito de "entende tudo" e papo aberto.

– Você gosta de homem? – Perguntei assim, com naturalidade como se não fosse nada de mais.

– Fabriciu, estava pensando em te fazer uma pergunta, mas não sei se devo...

A gente tem que passar por aquelas situações para aprender, se fosse hoje eu saberia exatamente como agir, e o que falar, mas como tudo na vida tem uma primeira vez, nem que essa primeira vez seja em um país estrangeiro justo no primeiro dia e ainda num idioma que não se domina.

– Não se preocupe, diga.

– Estava pensando em nós dois irmos ali no banheiro e você por o seu (censurado) pra fora e...

Interrompi-o nesse ponto, numa situação dessas o certo é mudar de assunto a não ser que goste do previsível, ou seja, eu não deveria ter dito para ele não se preocupar e dizer, pelo clima já dava para saber mais ou menos qual seria a pergunta. Eu não podia deixar de ver graça naquela situação, é algo que nem na imaginação se passa, ainda mais com a cara que ele estava, fixo, parecia um escravo das vontades, pelo jeito dele ele estaria disposto a fazer qualquer coisa, realmente me deu vontade de rir.

– Não! Eu não faço isso, como eu te disse tenho mulher e jamais faria algo desse tipo com homem ou mulher, você está confundindo as coisas, você é só um bom amigo, não vamos estragar isso.

Na hora ele mudou a aparência e fez sinal de acordo, então voltamos para o saguão de desembarque. No caminho ele me disse.

– Não comente dessas coisas com os meus colegas tá? Eles podem não entender.

domingo, 10 de setembro de 2006

12 – Enfim só!

É incrível o que um acidente pode desencadear, pode mudar o percurso de toda uma história, tá certo que não podemos chamar de "Acidente" o que aconteceu, mas de qualquer forma foi interessante. Assim que minha irmã entrou fui procurar por uma tomada para recarregar meu palm, tinha usado ele sem parar desde que sai de Avaré ouvindo música e fazendo anotações, faltava pouco para a bateria acabar de vez, eu tinha tido a "brilhante idéia" de começar um diário desde o primeiro instante em que pisei na rodoviária. Tudo bem voltemos ao acidente, estava eu caminhando e heis que um carrinho de aeroporto, subitamente, passa em minha frente vazio e sem ninguém guiando, olho em volta e vejo um casal correndo com as malas em direção aos portões de embarque onde minha irmã acabou de entrar, com certeza estavam atrasados e largaram o carrinho ali mesmo de qualquer jeito, nem pensei, agarrei-o e saí para buscar minhas malas que já estava quase na hora de retirá-los. Um carrinho faz uma diferença que só quem precisa sabe, agora eu estava em condições de procurar a tomada. Andei sentido a uma das laterais do aeroporto, para um dos estacionamentos, estava frio e cada vez que me distanciava do saguão esfriava mais, fui por um corredor vazio com várias salas de escritórios todos fechados, pois o expediente tinha se encerrado, disposto em dois andares, não se via ninguém, caminhei bem devagar empurrando meu carrinho e varrendo o ambiente tentando encontrar uma tomada, de longe, parecia que eu tinha encontrado uma, só que não tinha nenhum lugar para eu me sentar e o banco mais próximo estava na entrada de outra sala bem mais adiante, continuei caminhando para ver onde aquele corredor iria terminar, terminou em um hall que se alargava e tornava-se amplo para receber as pessoas que vinham de fora, apesar do frio saí para dar uma espiada, seria minha segunda vez que estava saindo para fora, na primeira estava apressado para alcançar aquelas garotas e nem deu para ver e muito menos sentir nada devido à pressa, encontrei vários carros com estilo bem diferente das do Brasil, eram grandes e marcas do tipo Mercedes, BMW, o mais chinfrim era Fiat, mas mesmo assim bonito, tinha algumas motos também. De vez em quando aparecia alguém saindo do aeroporto, mas eram raros. Voltei para dentro para recarregar meu palm, mas eu precisava sentar, fazia tempo que estava andando e sentar naquele chão frio não ia dar certo, por isso olhei para os lados, fui e voltei várias vezes para ver se tinha alguém e depois de assegurado se podia aparecer alguém arrastei o banco para perto da tomada, era um banco comprido e pesado, fiquei imaginando a cara dos ocupantes da sala quando virem o banco mudado, depois do trabalhão que tive, inclusive para procurar o recarregador que não lembrava onde tinha colocado e revirei todas as minhas coisas até encontrar, fui colocá-lo na tomada e só então percebi que não era compatível, nem senti raiva, estava sem ânimo para tanto, só conseguia pensar em cortar o fio e fazer uma gambiarra, não sabia se o padrão italiano era aquele ou se haveria alguma outra tomada compatível com o meu, nada que alguns minutos sentado não resolvesse, refleti alguns minutos e decidi procurar mais um pouco antes de tomar qualquer atitude, parecia que eu tinha encontrado uma tomada igual às que existem no Brasil em algum lugar só não me lembrava onde.

11 – Malpensa Milano, Itália.

Acordamos com o acender das luzes, era o sinal de que faltava pouco para chegarmos, dava para acompanhar a posição do avião pelo monitor e dava para ver que estava fazendo frio e o tempo estava nublado em Milão, bem, eu estava preparado para um pouco de frio, naquele ano tinha sido um dos anos mais frios na Itália, o ano que o Papa morreu, enquanto isso as aeromoças trouxeram umas toalinhas úmidas para a gente se arrumar e em seguida o café da manhã, tudo muito bom. Conversei um pouco com o meu vizinho de viagem, apesar da noite eu acordei melhor para conversar, sempre desenvolvo um positivismo exacerbado em momentos de tensão, fico eufórico, alegre, é um dispositivo meu que é acionado involuntariamente. Pela janela não dava para ver nada lá fora devido ao tempo nublado, estava chovendo e parecia bem frio. A minha irmã estava meio calada, mas com bom humor e na hora que o avião pousou qualquer um perceberia que ela trabalhava dentro de um avião, a naturalidade que ela agiu naquele momento a denunciaria a qualquer um que a observasse.
Desembarcamos e fomos buscar as nossas malas e em seguida tínhamos que passar pela polícia para apresentar os passaportes, para estrangeiros havia uma fila considerável somente para estrangeiros, para os cidadãos europeus era só passar direto, como o passaporte italiano de minha irmã estava vencido ela entrou na para apresentar o brasileiro, mas daí eu peguei o passaporte italiano dela e levei para perguntar a um fiscal se ele aceitaria aquele passaporte vencido mesmo, não teve problema nenhum e nós escapamos da fila. Nesses desembarques é simples agir, mesmo para um marinheiro de primeira viagem com eu, bastava seguir o fluxo, todo mundo fazia a mesma coisa, não tinha segredo nenhum, mas as pessoas impunham um ritmo acelerado e não dava para observar muito as coisas, como por exemplo, um carrinho para carregar as mala, a minha irmã que notou que para ter um era preciso depositar uma moeda de um euro, de imediato descartei a hipótese, pois teria que me acostumar com aquelas malas do jeito que estavam, afinal elas seriam minha suposta casa nos próximos dias e não teria carrinho à minha disposição pela cidade. Nós dois saímos pelo portão de chegada em Malpensa, meio desorientados, encontramos um saguão grande com várias pessoas aguardando a chegada das pessoas para recebê-las, havia placa com o nome escrito, aquela coisa que se encontra em qualquer aeroporto do mundo inteiro, sem saber direito o que fazer a primeira coisa que me passou pela cabeça foi um banheiro e também deixar a minha irmã se sentir o mais confortável possível para minimizar o desgaste dela.
– Vamos pegar um ônibus para irmos a um hotel Vi?
– Não sei, acho melhor a gente ver os horários de volta e ver se tem vaga.
– Depois a gente pode dar uma volta para você conhecer Milão né? Para você não vir aqui sem conhecer o lugar.
– Não sei se é bom arriscar, vou ver.
– Deixa eu ir no banheiro primeiro?
Seguimos as comissárias de bordo de nosso vôo na esperança de conseguir alguma coisa, conseguimos encontrar o banheiro, elas se sentaram em frente a uma das saídas do aeroporto esperando a van para levá-las ao hotel, estavam cansadas quase dormindo na cadeira, logo em seguida delas estava o banheiro à direita, minha irmã ficou me esperando fora cuidando das malas, quando voltei ela observou algumas brasileiras que passaram por ali e apontou a direção que elas foram me descrevendo rapidamente como eram, saí correndo atrás tentando alcançá-las, mas no final não deu coragem de abordá-las e voltei pra trás. Na volta estava passando ali umas pessoas que encontramos no Brasil na fila com a gente aguardando vaga para poder embarcar, eles eram do sul do Brasil, era uma família que estava sendo levada por um funcionário que trabalhava no aeroporto gaúcho, um rapaz simpático com fala muito confusa. O chefe da família me deu umas dicas e me levou para uma empresa que vendia passagem de ônibus para a cidade de Milão, eu comprei a passagem só para não desapontá-lo porque ainda não sabia bem o que fazer, nem sabia se iria usar aquele bilhete, me disseram que o bilhete tinha validade por tempo indeterminado, por isso comprei, em todo caso comprei apenas um, minha irmã ainda não sabia o que ia fazer. Esse é um tipo de informação importante, eu como a maioria pensei em tomar um taxi ou o trem que custa três vezes mais que o ônibus, quando voltamos a Vi estava tentando entender o guia da família e confirmava tudo o que ele dizia, dava para perceber de longe. A família veio porque tinha tipo um barzinho no litoral da Itália, eram em 5 pessoas, o pai, a mãe, dois filhos e um irmão do pai, não me lembro dos nomes agora, mas peguei o telefone dele em meu Palm Top e só não perguntei se tinha trabalho para mim porque o próprio irmão estava indo para o sul para trabalhar, se não tinha trabalho para o irmão para mim é que não vai ter, pensei. Agradeci muito por tudo e nos separamos, o guia acompanhou eles levando as malas para fora. De novo ficamos só eu e minha irmã, logo que chegamos percebi que minha irmã começou a ficar perdida e a se dar conta da encrenca que eu estava para me meter e cada vez que a gente conversava com um ela ficava mais perdida sobre eu que eu iria fazer, ela estava ficando inconformada e já tentava me convencer a voltar, acho que foi isso que a ajudou a decidir a voltar no mesmo avião para o Brasil. Para deixá-la menos preocupada resolvi colocar minha bagagem em um porta-volume até às 10 horas da noite.Para passarmos o tempo até dar a hora de partir fui atrás de um computador para acessar a internet e enviar e-mail para o Brasil, tinha uma gordinha que trabalhava em um quiosque embrulhando malas com plástico num dos corredores da parte de cima do aeroporto, bem fui me tentar me informar com ela como encontrar um computador ali, já estava ansioso para entrar em contato com os nativos e me meti a falar com ela, os gordinhos sempre são simpáticos foi mais por esse motivo que fui seco nela. Porque? A menina fechou a cara, e de feinha passou a horrorosa a única palavra que compreendi dela foi “...no te capisco niente...”. Ok, próxima. A sim tinha uma morena linda trabalhando num café no mesmo corredor logo em seguida, é bem melhor receber uma cara feia de uma mocinha bonita né? Fica menos assustador. Lá vou eu de novo, felizmente dessa vez deu certo, ela falava espanhol e me explicou que ali só com cartão de telefone para usar a internet e me disse onde e como comprar o cartão. Que emoção! Foram os meus primeiros contatos com os nativos e com relativo sucesso, a primeira vez a gente nunca esquece mesmo. Fui contar para a Vi tudo o que passei nas mãos daquela gordinha.
– Vi, fui perguntar para uma feinha onde encontrar internet e você precisa ver o jeito dela, foi uma grossa!
– Fá, tem que tomar cuidado, as pessoas aqui não são como no Brasil, elas são secas.
– É mas eu fui perguntar para outra garota e ela foi muito legal e adivinhe só, era bonita.
Tinha um senhor do lado dela com cara de chefão da máfia italiana, mas eu pensava que era brasileiro porque estava lendo um jornal do Brasil, mas era italiano, só que vivia no Brasil tinha uma empresa de caixa d’agua perto da capital paulista, ele achou engraçada a forma como eu estava explicando para minha irmã aquele episódio com as meninas e não conseguiu se segurar e começou a rir, aí já puxamos conversa. Naquela altura a Vi já estava esperando seu vôo sentada no saguão de partida e aquele senhor também estava esperando para voltar para o Brasil. Ele se preocupou comigo, queria saber como eu ia fazer para me virar lá e na maior boa vontade ligou de seu celular para um monte de amigos lá na Itália, tentava se informar quais seriam minhas opções e perguntava aos amigos se ele poderia passar o telefone deles para mim, me passou uns três números de telefone em diferentes lugares da Itália até que um deles disse que tinha um albergue para estudantes no centro de Milão e que eu poderia ficar lá se me passasse como estudante, mas o preço estava salgado ainda para mim, era uma diária de 15 euros, esquece, fiz de conta que iria procurar só para ele não pensar que teve todo o trabalho em vão e para confortar minha irmã. Fiquei muito encantado com a preocupação dele, aquele gesto me deu esperança de que poderia haver vários como ele e um iria dar certo, mas na prática os esforços dele só serviram para deixar a minha irmã mais desesperada ainda, ela foi vendo, ou melhor, ela não foi vendo o que eu iria fazer e me via numa enrascada sem saída, sempre me perguntava se eu não queria voltar. Na realidade eu estava mesmo enrascado se fosse olhar só o lado de eu me virar sozinho sem contar com ninguém. Nos despedimos dele muito agradecido, eu estava pensando a recorrer aos contatos dele só em último caso, naquela altura ainda achava que iria conseguir trabalho fácil na Itália.

sábado, 9 de setembro de 2006

10 – Atenção passageiro com destino para...

No ônibus, indo para São Paulo, tentei ler uma revista e ouvir música em vão, minha cabeça estava a mil pensando em um monte de coisas ao mesmo tempo, o resultado era como se eu não estivesse pensando em nada, que coisa horrível. Mesmo assim ao menos consegui tirar um cochilo. Esqueci as revistas no ônibus. Cheguei no terminal rodoviário do Tietê dentro do horário previsto, de lá liguei para minha irmã e ela me pareceu indecisa, afinal era o tempo que ela tinha para ficar com a família dela, o trabalho dela a obrigava a viver viajando. Deve ser difícil tomar uma decisão dessas, viver voando para lá e para cá com todo o desgaste que esse trabalho impõe e quando tem uma merecida folga ter que pegar um vôo com 14 horas de duração e depois voltar no mesmo avião. Não é fácil, tentei me por no lugar dela. No final ela decidiu ir naquele dia mesmo e disse para eu ir para a casa dela para de lá irmos para o aeroporto. Pelo telefone me pareceu que ela não esperava ir naquele dia, talvez eu tenha confundido com desânimo, de qualquer forma isso não era o que ela mais desejava. Dali fui direto para o aeroporto, achei melhor, afinal minha irmã precisava se acertar e era bom deixá-la sozinha.
Informei-me com todos que encontrava pela frente sobre as possibilidades de ir para o aeroporto e estudei bem as minhas opções, eu tinha tempo de sobra para isso, estava bem adiantado, cerca de 10 horas. Concluí que devia pegar um ônibus que saia dali direto de hora em hora, acontece que no caminho encontrei um ônibus fretado por uma agência de viagens esperando por seus clientes, então conversei com o motorista e ele aceitou me levar em troca de uma gorjeta. Eu costumo calcular todos os meus gastos e separar o dinheiro certinho, mas dessa vez, devido ao nervosismo eu havia esquecido completamente disso e fui embora só com o dinheiro que estava no bolso e não foi que deu exatamente para tudo o que eu precisava, não sobrou e nem faltou.
No aeroporto fui dar uma geral para reconhecer terreno, peguei um carrinho para colocar minhas duas malas. Mal sabia eu do que um carrinho de aeroporto iria representar para mim durante os próximos dias. Aconteceu comigo o que acontece com toda pessoa normal nesse país, o carrinho estava com defeito em uma das rodinhas da frente e puxava para um lado, o lado esquerdo se não me falha a memória. Fui atrás de um cartão de telefone para ligar de volta para a minha irmã conforme havíamos combinado.
– Alô. Vi? Cheguei, já estou no aeroporto.
– Tá bom, vamos combinar então de se encontrar em frente ao Mac Donald tá?
– Tudo bem. Você está mesma decidida a ir?
– Tá tudo bem, o Emerson vai me levar e nós nos encontramos lá.
– Combinado, até mais então.
Em seguida liguei para a tia da minha esposa, a tia Fátima, era ela que recebia a gente na maioria das vezes que fomos para São Paulo para arrumar a documentação italiana, ela morava a poucos quarteirões do consulado italiano em Santa Cecília, morava perto dos tradutores, dos cartórios, da Avenida Paulista... Ninguém atendeu. Imaginei que ela tinha ido para a casa de uma irmã dela, a tia Inês, havia conhecido ela quando ainda namorava a minha esposa 11 anos atrás. Não custa ligar né? Tempo é o que mais tenho. A tia Inês atendeu, muito atenciosa ela, pareceu que ainda se lembrava de mim, mas a tia Fátima não estava, de qualquer forma deixei recado e minha despedida. Também liguei para o meu cunhado, o Fernando, ficamos na casa dele algumas vezes, ele mora em Guarulhos.
– Cunhado? Estou indo finalmente para a Itália.
– Onde você está?
– No aeroporto esperando o meu vôo.
– Dá tempo de a gente chegar aí?
– Sim, ainda tenho umas 5 horas.
– Legal, to indo então.
– Olha, vou estar te esperando em frente ao Mac Donald tá?
– Em frente ao Mac é? Pode deixar a gente encontra.
– Um abraço.
O meu repertório de ligações parecia haver acabado, só me restava procurar outro carrinho para trocar, já não suportava mais aquele que estava empurrando, é uma espécie de tortura, a gente tá preocupado e com a cabeça em um monte de coisas e parece que tem alguma coisa de incomodando, você fica irritado e se esquece o motivo, acha que é por causa da correria, mas de repente, num despertar de um pesadelo, você descobre que a razão de tanta irritação é o maldito carrinho que não para de puxar para a esquerda, aproveitei aquele momento de lucidez para pegar o primeiro carrinho que encontrei pela frente. Ufa deu certo, simplesmente parece que todos os meus problemas desapareceram, me sentia flutuando, desimpedido. Rodei livre e solto por todo aeroporto, curtindo a paisagem por alguns minutos e aproveitei para comprar euros, foi no caixa do Banco do Brasil, estava disposto a levar tudo o que tinha reservado para essa jornada, mas o caixa garantiu que dava para sacar dinheiro com meu cartão com chip de qualquer caixa eletrônico europeu e era capaz de sair mais barato ainda. E se ele estiver enganado? Já pensou, eu com dinheiro no banco e sem poder sacar é muita sacanagem, mas seria pior se eu for roubado ou mesmo perder todo meu dinheiro, isso sim seria pior, não conseguia ver uma solução para aquela hipótese, valia a pena arriscar e pagar para ver, no final saquei apenas 200 euros, eu realmente estava disposto a levar os meus planos ao pé da letra e aplicando os planos um e dois eu não precisaria de muito dinheiro mesmo.
Meu cunhado chegou antes da minha irmã, eles trouxeram uma caixa de bombons para mim. E também um daqueles quitutes deliciosos que só a mulher do meu cunhado sabe fazer, eles conhecem bem o meu ponto fraco. Chocolate. A tensão era tanta que nem acabei com tudo ali mesmo, só comi alguns.
Um tempo depois vi a minha irmã passando olhando para todos os lados bem de longe sem querer, saí correndo em direção a ela, já fazia um tempinho que ela estava me procurando.
– Vi, esse é o meu cunhado e sua mulher.
– Oi. Tudo bem?
– Prazer.Apresentações feitas e alguns minutos de conversa depois fomos comprar as passagens, a minha irmã que tinha que compra-las. Deu tudo certo, havia lugar para nós dois ir, esqueci desse detalhe, a gente só podia embarcar se sobrasse vaga. Era para eu ir mesmo. Nos despedimos de meu cunhado e fomos. Já nem estava mais nervoso, naquela altura nada podia dar mais errado, o pior havia passado. Minha irmã ainda tentou ser liberada de ter que me levar com o chefe de embarque sem sucesso, ela havia vindo só com a roupa do corpo e a bolsa para me levar. Dentro do avião conseguimos ir na classe executiva! Que chique. Tinha vinho, champanhe, um monte de aperitivos e um detalhe importante, espaço. Dava até para se espreguiçar naquelas poltronas enormes. Meu vizinho de poltrona era um cara com aparência de indiano, os olhos roxos e aprofundados pareciam olheira, aparentava ter mais ou menos a minha idade, estava indo para a Suíça a trabalho, foi um bom vizinho e conversamos algumas vezes, minha irmã conseguia dormir bem, só eu que não dormi muito, acordava toda hora pensando em nada.