quinta-feira, 30 de novembro de 2006

76 – Cão que ladra...

Dali a pouco resolve aparecer Sanchez, embriagado, ele começa a proferir palavras sem sentido, talvez o lance tenha começado antes de eu chegar, foi a única explicação que encontrei porque o visitante se irritou com ele aparentemente se razão. Começaram a discutir, no começo todos davam risada até as coisas esquentarem de verdade. Chegou um momento que Sanchez levou um empurrão. Os demais da casa, Maria, sua irmã, a prima de Jorge, Maristela e Marcos, pareciam dar razão ao outro. Os que eram adeptos de deixarem o recinto tinham razão desde o começo, era o que eu deveria ter feito. A cena era até engraçada, patética, mas no final de um dia e da semana perdia o encanto. Só que lá em cima as coisas não estavam tão boas também, Mercedes estava se arrumando, sozinha, eu já não conseguia conversar com ela naturalmente, nem cumprimentar mais eu fazia. Tentei me concentrar em meu diário. Maristela subiu um pouco depois para comentar sobre a discussão.

– O que estava acontecendo lá em baixo? – Perguntou Mercedes.

– Era Sanchez que estava insuportável. Não parava de provocar.

– Jorge disse que ele vai sair da casa, vai morar com Conan aqui ao lado.

Maristela é uma pessoa divertida, parecia tímida quando a conheci, só pareceu. Sempre estava metida nas conversas sobre o povo que dormia na parte de baixo com ela. Certa vez, quando eu andava na paróquia do padre Marco ele comentou para o grupo ao qual eu estava conversando que havia um serviço para cuidar de uma senhora no sul do país e não tinha conseguido ninguém disposto a ir para lá, contei para Maristela, afinal fazia meses que ela estava parada. Então ela foi atrás do padre para se informar, parecia que estava dando certo e iam encaixá-la no trabalho só que ela desistiu na última hora. Fazer o que.

Depois de um tempo David chegou, ele tinha ido jogar bola com os amigos. Estava falando ao celular com um amigo que se encontrava em Veneza, pela empolgação indicava que fazia tempo que eles não se viam, parecia que ele estava combinando alguma coisa com seu amigo.

– Era meu amigo. A última vez que nos vimos eu estava vindo para cá. Descobri que ele está trabalhando em Veneza agora. Ele conseguiu meu celular com outro amigo.

– Legal, e aí? O que ele conta de novo?

– Ele quer vir para cá nesse domingo e ficar até terça-feira, vou conversar com Jorge para alugar a cama que era do Conan.

Logo teríamos mais um no nosso quarto novamente. – justo agora que eu estava me acostumando com menos gente. Só espero que o cara seja legal. – Pensei comigo. Aquela era uma boa forma de fazer turismo gastando o mínimo, sai mais barato do que ficar em albergues.

Naquela noite Mercedes saiu para a balada dando pistas de que seria uma longa noite novamente, estava em tom provocativo, querendo chamar a atenção. Difícil de entender o que havia de errado com aquela menina. Tudo isso só por causa de um celular?

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

75 – Momento “curtural”.

À tarde apareceram mais alunos, foi quando me dei conta de ver muitos que não lembrava ter visto antes, todos africanos, os países exatamente eu não sei, relaxei um pouco em me preocupar com a origem dos meus colegas, banquei o interesseiro, não queria desperdiçar meu tempo. Que absurdo.

Peguei uma carona com Alex de volta para casa no final do dia, sua namorada sempre fica livre nos finais de semana, ela era engenheira e estava trabalhando na construção da ferrovia de trem bala que vai cruzar toda a Europa, sua linha vai passar por Bérgamo também, segundo Alex. É uma obra de engenharia complexa a construção dessa estrada de ferro. Boa parte do percurso será suspensa para haver um nivelamento mais preciso nos trilhos e filtrar as vibrações oriundas da movimentação do próprio trem. Nem é preciso dizer que o dinheiro necessário para construir um único kilometro dessa linha deve ser bem maior do que para construir uma linha convencional, Alex não soube me dizer quantas vezes é mais caro. Nós sempre conversávamos sobre a obra, sua namorada era engenheira civil e os dois viviam juntos na via Quarenghi. Era meu sonho conhecer sua namorada, por causa de seu trabalho, mas eu não me sentia próximo o suficiente para dizer isso a Alex, eu mais do que ninguém sei como é delicado a questão de se aproximar das pessoas no tempo certo sem dar motivos para desconfiança, mesmo assim não deu para evitar mal entendimento em algumas ocasiões com outras pessoas.

Sexta-feira no final do dia, eu só podia esperar o esperado, gente, cerveja, Cúmbia, discussão, rotina... Parece que eu já ouvi essa palavra antes. Deixa para lá.

Dessa vez tinha um homem, beirando seus 35 anos, ele ia lá de vez em quando, nunca trocamos nenhuma palavra, dessa vez ele ofereceu um copo. Todos disseram em vão que eu não bebia, não teve conversa, eu não podia fazer uma desfeita dessas, afinal um copo de cerveja no final de uma sexta-feira vinha bem a calhar. Sujeito carente. Precisava de platéia para se auto-afirmar, era uma daquelas figuras fáceis entre seu povo que adorava soltar declarações óbvias com tom de exclusividade.

– ...Porque eu sou assim Maria, eu trato bem as pessoas. Se precisar de mim não deixo na mão. Agora, que sejam leais comigo... blá blá blá...

Por um acaso devemos tratar mal ao nosso próximo? Se pudermos fazer alguma coisa por alguém por que deixaríamos de fazê-lo? O que significa ser leal com alguém além dos nossos pais, cônjuge e com Deus? Uma pergunta que sempre faço e não se cala é o que fazer numa hora dessas? Até agora não vi solução melhor do que ficar observando e tentar extrair alguma mensagem disso tudo. Alguém poderia dizer que bastasse sair dali, é uma boa opção, mas visto que não me restava muita coisa para fazer não custava nada ficar e curtir aquele momento “curtural”.

sábado, 25 de novembro de 2006

74 – Última sexta-feira do curso.

No último dia útil daquela semana estava agendada a visita de um advogado para explicar sobre as leis trabalhistas da Itália. Era um jovem rapaz que trabalhava ali na escola mesmo, acredito que estava fazendo estágio ou fazia estágio em Milão ou ainda estudava direito em Milão e trabalhava na escola, bem, só sei que ele mostrou o livro da constituição italiana (http://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf), não tinha mais de 50 páginas, fininho que até doía. Naquele dia eu fiquei muito impressionado com o tamanho da composição. Deve-se levar em consideração o fato de eu ser totalmente leigo nessa área de direito, para mim o livro onde estava a nossa (http://www.siope.inep.gov.br/arquivos/leis/1988.pdf) era enorme. Lembro-me das piadinhas que se fazia em 1988 principalmente o programa que o Jô Soares tinha na rede Globo. Naquela época, ele colocava esquetes sobre a utilidade do livro no cotidiano do povo brasileiro. Em uma delas explicava que era útil para anão subir em cima e poder alcançar o telefone nos orelhões, em outra ele demonstrava a utilidade do livro para calçar mesa que tinham as pernas desniveladas, então aquelas imagens ficaram gravadas na minha memória como se o livro fosse grande. Acabei informando equivocadamente o palestrante sobre a desproporção do tamanho entre nossas constituições, mesmo com a ênfase que dei no suposto disparate ele não me pareceu convencido, acabou se revelando um profissional pragmático.

Foi uma manhã de sexta-feira movimentada aquela, depois da palestra fomos a outra sala para assistir a um vídeo, era sobre uma máquina fresadora programável de última geração. O povo italiano tem uma tradição muito grande focada no trabalho, pode-se chamar de cultura do trabalho. Para eles esse é o único caminho de se construir um país. Pelo menos é assim no norte onde pude presenciar pessoalmente. – Mas que obviedade é essa que ele está me contando? – deve ser a pergunta que muitos estão se fazendo nesse momento. Uma coisa é ter ouvido falar, escutado na escola alguma coisa semelhante, outra é vivenciar essa teoria na prática. Um exemplo clássico era a demonstração de disponibilidade que os trabalhadores davam, sempre andando aceleradamente no trabalho, quase correndo. Uma exceção a essa regra eram os trabalhadores de repartições públicas, como aqui faziam com má vontade e desleixo. Estou falando da indústria. Outras pistas que confirmam o meu sentimento sobre o assunto, a paixão com que o professor Estefano explicava sobre seu trabalho no chão de fábrica, tentando nos passar a importância de ter cuidado com as ferramentas da indústria. Ele nos disse, logo no primeiro dia, que aproximadamente 90% das empresas lá eram de origem familiar, a família construiu seu negócio estendendo seu meio de relacionamento. Conan e seu Jorge sempre comentavam o cuidado que seus chefes tinham com a coisa privada, admirava os passos firmes e rápidos que seu gerente de fábrica dava o dia inteiro, sempre de pé, nunca fazia corpo mole. Era uma disciplina quase militar. Pelas ruas dava para sentir a obsessão deles pelo trabalho, o contraste é gritante. O trabalho é para eles um dogma, um fim e não um meio de conseguir as coisas...

Almoço. Como sempre minha maçã. Dessa vez lendo a apostila de italiano. Eu já estava captando a rotina do meu canto de repouso, reconhecia muitas pessoas, os mesmos cães passeando, os mesmos casais namorando, a mesma paisagem. Eu tenho um problema grave com a rotina, ainda bem que o final de semana estava chegando.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

73 – Macete.


Nem Federico, nem Elizabeth, eu acho que acabamos nos desencontrando. Pudera, não tínhamos combinado nada para depois da aula. Foi melhor assim, eu ficava mais à vontade de poder voltar caminhando, peguei o costume de ficar com minha consciência limpa quando não contrario aos outros, esse foi um vício que adquiri no México, para não desperdiçar nenhuma oportunidade eu havia adotado a postura de nunca dizer não a ninguém, nem se me oferecessem uma comida que eu não gostasse como peixe, por exemplo, logo nos primeiros dias que cheguei lá me levaram para jantar somente camarão cozido, foi um pesadelo para mim, comia sorrindo para não me denunciar. Em contrapartida eu viajei para todo o canto como convidado, grande parte disso eu credito à minha disposição de topar qualquer parada, as pessoas se sentiam mais à vontade de me convidarem, pois a chance de receberem um não era pequena. Acabei incorporando isso em minha personalidade o que havia começado de maneira artificial.

Naquela noite, para não perder o embalo, sentei-me à mesa e me pus a ler a apostila. Muito interessante. Ela ao lado de minha pasta branca passariam a ser meus principais companheiros nas minhas jornadas diárias, qualquer momento que eu me colocava ocioso, quer seja no ônibus, quer seja esperando alguém, lá estava eu decorando as conjugações dos verbos. Bem, primeiro comecei lendo toda a apostila, depois li de novo e aí sim comecei a decorar os verbos. Foi uma fórmula que deu certo, com aproveitamento total.

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

72 – Professora.

Logo partimos para as salas de aula mais no fundo, ao lado do templo, as pessoas estavam chegando. Povos de todas as partes do mundo, Sri Lanka, vários países da África, América do Sul em peso especialmente... Bolivianos, indianos. Chineses eu não encontrei nenhum em Bérgamo. Merece aqui uma pausa quanto aos russos, eles enchiam as praças do centro da cidade, não só russos como os povos do leste europeu em geral, sempre estavam lá, sentados, os dias se passavam e sempre se viam as mesmas pessoas esperando não imagino o que, o único lugar diferente das praças que se podiam encontrá-los era na fila do seminário que serve comida, não encontrei nenhum deles nessa escola do curso de italiano ou qualquer outra igreja. Sempre se via uma garrafa dentro de um saco de papel no meio dos grupos que formavam deles.

Elizabeth me apresentou aos seus colegas, tinham duas brasileiras que faziam o curso também, eles as procuraram só que nunca cheguei a conhecê-las.
Elizabeth me ajudou a procurar minha turma, era no piso superior, ela me introduziu aos professores, duas moças muito simpáticas, uma era bergamasca, a professora responsável, chamava-se Laura, tinha um ar de atirada, jeito de curiosa, dava uma atenção que poucos são capazes de fazê-lo com tanta propriedade, era a simpatia combinada com o equilíbrio, demonstrava entusiasmo pelas coisas, é muito edificante conhecer pessoas como Laura. A outra professora auxiliar estava fazendo estágio ali, veio do sul da Itália da Sicília, baixinha e igualmente simpática, ela estava partindo para sua terra no dia seguinte, de férias. Na minha turma tinham uma venezuelana (provavelmente é colombiana também), três africanos, dois bolivianos e um do Sri Lanka, acho que é só. O meu azar foi que o semestre estava se acabando e eles estavam adiantados, já tinham acabado a apostila. Para mim não era tão problema assim, acredito que o mais importante é falar, o máximo possível e ler. Aquele curso nem se comparava com o que estava fazendo durante o dia, onde escutava palavras do cotidiano e podia conversar sem pudor, os sete dias do curso sobre máquinas valeu mais do que se tivesse feito seis meses do de italiano duas vezes por semana.

Como já tinham terminado a apostila, a professora levou alguns poemas para a gente ver. Logo se via que era uma pessoa romântica essa Laura, essa foi uma aula muito boa, além de lermos poemas ela tentava explicar o sentimento do autor, sou capaz de me recordar até hoje um trecho do poema que marcou, talvez pelo contexto em que me encontrava. "... larga-me ali, no canto... deixe-me assim...". Estava falando comigo e do jeito que ela falava dando ênfase nessa parte...

Parecia que aquela turma estava chegando ao fim do curso, estavam todos em um clima de despedida, eu pensava que era por causa da professora auxiliar que estava partindo de férias. Quando a aula terminou pude conhecer melhor meus colegas de classe, começou pelos africanos.

– Então você é brasileiro? Joga-se muito futebol por lá não? Você gosta de jogar futebol? – A clássica pergunta...

– Não, eu faço parte de uma pequena minoria que não joga futebol. Além de você estar conhecendo um brasileiro, sou um brasileiro raro.

– Nossa eu queria ser brasileiro...

– Ai! Eu também queria ser uma brasileira. – Laura interrompe suspirando. Nessas horas dá um gosto ser deste país. Só que nenhum lugar no mundo bateu no México no quesito de se tratar um brasileiro como celebridade, eu ainda estou para ver.

Lá embaixo conversei um pouco com a professora auxiliar, ela me contava sobre o dialeto que falam  em sua terra, uma combinação do latim, com herança dos mouros e egípcios, me disse algumas palavras, não entendi nada. Dei um tempo para ver se Elizabeth aparecia, eu ainda não tinha conhecido Federico e esperava conhecê-lo naquela noite.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

71 – Fazendo diferença.

Essa conversa com aquela senhora foi empolgante, não só do ponto de vista de uma perspectiva de trabalho como também pela realimentação que recebi no idioma local. No dia a dia, ali com meus colegas não dava para perceber direito, eu me acostumava com eles e eles se acostumaram com o meu jeito mascarando um pouco as coisas. Não consegui identificar se a senhora estava falando em "italianhol" comigo, eu acho não. Fiquei preocupado em ter que abandonar o curso que estava fazendo justo no último dia caso o trabalho desse certo, não me agrada deixar incompleto uma tarefa começada, por isso já começava a ensaiar os argumentos para convencê-los a me deixar começar na quarta-feira da próxima semana que estava para vir, dia seguinte ao final do curso. Na dúvida não comentei com ninguém sobre aquela novidade, tantas coisas que eu já dei como certa e não se consumaram…

Com tantas preocupações na cabeça o tempo voa que quando percebi o dia já tinha terminado. Ainda bem que Alex me deu uma carona assim garantiria minha chegada no horário combinado com Elizabeth. Ao chegar à casa comi alguma coisa rapidamente com Sandra e parti para a escola caminhando. Quando havia ido de ônibus na primeira vez dava a impressão de que seria uma longa caminhada. Eu não tinha muita certeza em que direção seria a escola, apesar de o trajeto ser mais ou menos linear com exceção de umas duas viradas em determinado ponto, pontos esse que eu não sabia exatamente onde eram. Acabei dando voltas a mais, é sempre assim quando se está desbravando novos terrenos. Mesmo assim cheguei adiantado. Aquela cena de eu vagando por aí com minha pasta branca começava a ficar rotineira. Sentei-me... Com minha pasta branca...

– ELIZABETH! – Gritei para que ela me visse num canto próximo à entrada da secretaria em frente ao templo de uma igreja católica em estilo contemporâneo.

 – Fabriciu... Faz tempo que você chegou?

– Uns quinze minutos... E aí? Aonde vamos agora?

– O lugar para se inscrever no curso é ali, ainda está fechado... Veja. A senhora da secretaria está chegando agora. Vamos...

Aguardamos até a senhora terminar de se organizar e nos dar atenção.

– Boa tarde. Eu gostaria de me inscrever para o curso de italiano.

– Você deve conversar com o coordenador antes para sabermos qual a turma mais apropriada.

Conversei com o coordenador e consegui convencê-lo de que eu tinha condições de pegar a turma mais avançada, ele ficou na dúvida, mas no final me liberou. Preenchi o formulário de inscrição e ganhei uma apostila. Seu conteúdo era muito bom, aprendi todas as conjugações dos verbos nela, decorando mesmo. Quando saímos Elizabeth olhou sorrindo para mim dizendo:

– Nossa! Eu queria tanto falar como você.

terça-feira, 21 de novembro de 2006

70 – O primeiro susto.

Já no meu produtivo curso as coisas se repetem, o celular tocou novamente em plena aula. – Esses trotes desses moleques já estão torrando. – pensei incomodado. Todo dia eles aprontavam dessas, acabei desligando o aparelho sem atender, como sempre, quando fui confirmar no display do identificador não estava escrito "chamada privativa" tinha um número de telefone fixo no lugar! Que nervo! Aquela neura da possibilidade de ser um emprego inevitavelmente vem na cabeça, eu nunca iria ficar tranqüilo até tirar isso a limpo, no primeiro intervalo que tivemos fui atrás de um telefone que pudesse fazer uma chamada com aquele cartão que havia comprado lá no aeroporto de Malpensa, ainda restavam bastantes créditos, os de meu celular já estavam no final e era bom economizá-los para uma emergência.

– Alô. De onde é? – Eu nem sabia como fazer a pergunta, como explicar o motivo de minha chamada.

– Quem está falando aí? O que deseja? – Uma senhora me responde falando em italiano.

– É que recebi uma chamada em meu celular há uns minutos atrás e só agora estou podendo retornar a ligação, aqui quem fala é o Fabriciu. – Me surpreendi com o que fui capaz de falar, numa boa, em italiano! Era a primeira vez que estava conversando com estranhos desde que comecei o curso na escola. Com meus colegas italianos não contava, eles me davam muita colher de chá.

– Ah sim! Fabriciu né? Nós conversamos na semana passada. Eu estou falando de Mozzo, da igreja do padre David se lembra?

– Claro! Tudo bem? No que posso ajudar?

– Conseguimos um posto para você em uma clínica médica, eles estão precisando de alguém para organizar e cuidar do almoxarifado, você está interessado?

– Sim. Estou muito interessado eu ainda estou parado à procura.

– Tudo bem, nós vamos fazer o seguinte, vou ligar lá na clínica e combinar um horário para que eles possam conversar com você... Que horário você está disponível?

Sei que nessa hora eu deveria mandar o curso para o espaço, mas tive sangue frio de pensar bem antes de dizer que poderia ser em qualquer horário.

– Para mim seria bom depois das 16h30min.

– Combinado, vou falar com eles e depois eu te retorno para te dizer o que combinei.

– Estou aguardando ansioso.

Não preciso dizer que nossa conversa foi sofrida, à custa de muito gaguejo e pausas, e também não compreendi muitas coisas, por exemplo, qual seria minha função lá, só fui me dar conta depois que conversei com o pessoal da clínica. Fiquei ali imóvel, não consegui voltar para a aula depois do intervalo até conseguir falar com a senhora de Mozzo, esperei um tempo considerável... enfim o celular tocou.

– Alô.

– Fabriciu... Está combinado... Consegui marcar para você na segunda-feira que vem às 17h00min. Você deve procurar Paolo ou Silvana.

– Tudo bem, eu estarei lá. Nem sei como agradecer, muito obrigado.

– Não tem de que, depois eu vou ligar para saber como foi a conversa ok?

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

69 – Palmtop.

Fiquei um pouco frustrado por não poder ajudar meu amigo mais, ele realmente estava na pior, não tinha dinheiro para nada, pelo contrário estava devendo. A única coisa que não faltava para ele era bebida.

Já em meu leito me pus a escrever meu costumeiro diário. Sempre associam a teimosia com a imagem de um burro empacado, de vez em quando essa imagem parece fazer sentido, logo na primeira semana que cheguei a Bérgamo a minha até então memória artificial infalível, também conhecida como palmtop, havia dado uma pane geral, nem resetar adiantava, tive que desligar a memória dela e apagar todo o seu conteúdo! Eu tinha feito um backup um dia antes de partir do Brasil, ou seja, perdi tudo o que tinha feito depois disso, resumindo, perdi o diário que tinha começado a escrever. Foi uma mistura de raiva, frustração, impotência, desespero, típicos das épocas em que os computadores pifavam de uma hora para outra e quando se tentava resgatar os backups dos disquetes estes estavam estragados também. Após esse desastre veio a teimosia, não me dei por vencido e recomecei o diário de novo, desde quando saí de Avaré, foi fácil relembrar e no final coloquei mais detalhes do que o anterior. O software de backup que eu havia instalado no meu dispositivo móvel funcionou bem, tudo foi restaurado, principalmente um de meus tesouros de anos de acúmulo, meus contatos. Felizmente detectei uma falha grave logo de cara, assim que eu tinha terminado de reescrever o diário imediatamente fiz um backup no meu cartão de memória externo, SD card, funcionou novamente e constatei o novo arquivo criado pelo programa, só que já calejado com essa história de inovações tecnológicas imaturas tentei restaurar o backup que acabara de criar. Bingo! Deu pau! O programa dava erro na metade da execução! Estava eu em uma encruzilhada, abandonava o projeto de escrever sobre tudo o que me acontecia e punha a perder tudo o que acabava de escrever pela segunda vez ou encontrava outro caminho para preservar meus dados em caso de outro eventual acidente. Como já havia escrito tudo de novo, o que não era pouco, não poderia simplesmente abandonar e me dar por vencido, passei a investigar um meio alternativo, gastei horas até descobrir os arquivos onde são armazenados os textos e encontrar um meio de salvar somente a parte que interessava, acabei descobrindo. Depois de vários testes constatei que meu novo método iria funcionar em caso de nova pane. A partir de então passei a salvar meus dados a cada três dias. Finalmente chegou o dia que justificasse todo aquele trabalho investigativo que levei procurando, nessa noite o palm falhou novamente, ele ficava restartando indefinidamente. Fiquei tão inseguro para verificar se iria dar certo que resolvi deixar o aparelho daquele jeito a noite toda e ver no que ia dar no dia seguinte. No outro dia a bateria havia se esgotado e a memória se esvaziado, passei a executar os procedimentos de recuperação dos dados, primeiro restaurei o backup que fiz no Brasil e em seguida substitui o arquivo referente ao texto do diário, que era um arquivo de sistema não acessível pelo usuário, pelo que vinha salvando periodicamente. Deu certo! Consegui recuperar meu diário. Seria uma judiação perder todos aqueles registros que vinha fazendo sistematicamente. Meu palm passou a funcionar muito estranho a partir de então, sempre dava umas mensagens de erro que nunca tinha dado e ele travava com mais regularidade do que antes, ficou muito estranho, mas deu para eu continuar a registrar meu cotidiano no diário... David era fascinado pelo meu aparelho, sempre pedia para brincar com ele, só não comprava um porque eu disse a ele que é necessário um computador de mesa para instalar os softwares nele, sem isso o aparelho serviria como uma simples agenda, eu tinha instalado tudo o que precisava antes de partir, o que fazia falta era quando aconteciam esses desastres, era só conectar no computador que ele restaurava tudo como se nada tivesse acontecido e eu não precisaria remediar com essas soluções improvisadas. Essas coisas não vêm escritas em nenhum manual, a gente tem que aprender apanhando.

sábado, 18 de novembro de 2006

68 – Litoral.

Quando voltei para dentro ninguém comentou nada sobre Elizabeth, nem para o bem e nem para o mal. Em países com nível educacional mais evoluído existe um grande diferencial no que diz respeito à personalidade das pessoas e a interação dos demais com elas, não importa de que país venha, estando com pessoas de diferentes nações a postura é a mesma, ninguém comenta sobre traços de personalidades, estilo de se vestir, mentalidade, ou coisas afins. Isso não é uma regra, mas funciona em 90% dos casos. Eu percebi esse diferencial na comunidade boliviana que estava fazendo parte, era mais ou menos assim, com exceção de um ou outro. De qualquer forma nunca me importou muito a opinião dos outros sobre meus amigos.
Fiquei lá embaixo brincando com as crianças e fazendo um social com os demais, conversei com Marcos um pouco, ele estava muito aflito, não suportava mais aquela vida, queria sair daquela cidade, só não o fazia porque seu passaporte estava preso pelo dono da casa.
– Se eu pudesse rever meu passaporte não pensaria duas vezes, essa cidade é muito devagar, existem poucos lugares para procurar trabalho, nem se compara com Milão, por exemplo. – Ele era fã daquela cidade, sempre estava falando de lá.
– Então... Aquela brasileira que é voluntária no seminário me disse que agora vai começar a temporada no litoral e se consegue muito dinheiro lá.
– Interessante, me parece uma boa mesmo, logo vai começar o verão e todos vão viajar, essa cidade fica deserta nessa época. O problema é que mesmo se eu conseguir reaver meu passaporte vou ter que arrumar dinheiro para ir até lá.
– Se eu fosse você eu partiria sem passaporte mesmo. O que você tem a perder? E tem mais, eu iria para o litoral de carona, ou arrumava uma bicicleta e me deslocava para lá pedalando, você vai levar no máximo uma semana para chegar. Uma semana parado ou uma semana pedalando dá no mesmo. À noite você dorme num saco de dormir e procura comida nas igrejas. – Eu comecei a ficar com vontade de fazer aquilo.
– Não! Não creio que isso vá dar certo... Quem sabe? – Ele me pareceu meio balançado.
Mais ou menos uma semana antes àquele dia eu havia encontrado dona Mara na rua, ela estava saindo de uma casa de telefone e vivia ali perto, eu vi o prédio de sua casa. Ficamos um bom tempo conversando. Ela tinha ido para a Itália a 20 anos atrás com um namorado italiano, eles se conheceram e um mês depois ela já estava partindo. Disse-me que o sogro dela a adorava, mas não deu certo com o namorado, ele passou a destratá-la, porque creia que dona Mara estava em suas mãos. Ledo engano, um dia ela deu um basta em tudo e partiu para o litoral, começou descascando batata. Foi uma das melhores épocas da vida dela, ganhou muito dinheiro. Boa parte da Europa desce para as praias italianas no verão, são muito badaladas. Eu era um pouco acético com essas coisas, presenciando aquela crise e o desapontamento que tive ao chegar na Itália não me animava a ir tentar a sorte em lugares alternativos, até porque o meu interesse mesmo era seguir minha profissão, eu já estava atingindo um nível que me permitia dar um passo maior, pelo andar da carruagem eu sentia que estava preste a almejar um posto mais adequado, mesmo porque minhas alternativas de se trabalhar como operário estavam se esgotando. Olhando de agora parece que eu estava meio fora da realidade, não consigo ver agora o que me levava a pensar daquela forma, se nem um posto menos qualificado eu conseguia me encaixar. Naquela época mesmo às vezes eu me questionava se lá no fundo, no meu subconsciente, eu não estivesse com vontade de pegar no pesado e estivesse arrumando desculpas para não trabalhar. É muito difícil enxergar embaixo da tempestade, a gente fica confuso, se perde a noção de direção, sem um plano de vôo robusto fica pior ainda.

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

67 – Confiável.

No final do dia parti a toda ao local de costume para me encontrar com minha amiga e seu cunhado. Ficamos um bom tempo esperando-o e nada, como Elizabeth não tinha muita paciência ela tentava ligar toda hora para Federico em vão. Logo ela desistiu.

– Vamos-nos sem ele Fabriciu.

– Melhor, já está ficando tarde e a essas horas eu acho que não vai ser muito fácil encontrar o padre. Dá para irmos a pé é aqui perto.

– Tem certeza? Onde é?

– É ali na minha rua descendo e logo depois que cruzarmos a linha de trem.

Coitada, ela não gostava de andar a pé mesmo. Foi batata, o padre não estava mais lá, para não perder a viagem levei-a para conhecer meus amigos bolivianos. Realmente nossa amizade nunca iria dar certo se tivéssemos nos conhecido sob outras circunstâncias, quando nós entramos eu a apresentei a Maria e Jorge que estavam lá na sala. Que cara de pouco caso que ela fez, fechada, com aquele óculos escuro, parecia uma dessas artistas esnobe. Enfim, era o jeito dela. Percebi que Maria olhava para Jorge com uma cara de quem diz – Aí tem. – Elizabeth ficou pouco ali, não conversava nada, parecia que estava contrariada. Foi questão de minutos até ela se levantar para se despedir. Saímos, fui acompanhá-la até o portão de entrada.

– Tudo bem Elizabeth?

– Sim, tudo em ordem... Você vai ficar aqui?

– É amanhã eu tenho que ir para meu curso, chega por hoje. A gente vai lá na escola amanhã né? Desta vez eu te encontro lá tá?

– Tudo bem... Até amanhã, pois.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

66 – Fastídio.

Todo mundo sabe que a melhor forma de se aprender um idioma é no país de origem, o idioma entra pela força, mas tem certas palavras e expressões que ficam marcadas, quando a gente ouve passa a ter outro sentido além do significado que ela representa, como quando você escuta uma música que te remete a um episódio de sua vida. Por exemplo, quando digo não sei, imediatamente imagino a rua onde estive com a mãe de meu colega com aquelas roupas diferentes. Uma palavra em italiano que para mim soa como uma maldição é “fastídio”, a primeira vez que a ouvi foi com Aline, estávamos voltando do almoço e lá estava ela de pé, com uma perna só, apoiada com a muleta. Não deve ser muito agradável ficar muito tempo apoiado com uma perna só, já tentei e cansa o que dirá quando a outra está engessada e não pode sequer tocar no chão. Eu já tive uma perna engessada, tinha uns quatro anos de idade, me lembro que caí de um banquinho na cozinha de casa, não consigo me lembrar se o gesso me incomodava. Que pena. Lá estava ela, no pátio dos fundos, a minha colega predileta para se interagir. Estava acendendo um cigarro bem na hora que cheguei. Tão nova e já fumando! Este é um grande mal daquele povo, cigarro. Malditos cigarros.

– Ai! Isso me dá “fastídio”! – Me fala fazendo careta.

Como um detalhe aparentemente insignificante pode mudar todo o curso de sua vida! Uma expressão mal compreendida tem o poder de mudar um destino? Será que já houve guerras travadas por causa de uma palavra mal compreendida? Quantas pessoas morreram por causa disso? A verdade é que “fastídio” sugeria, pelo menos para mim, algo como fadiga, enjôo, desânimo. No fundo é mais ou menos o que significa mesmo, mas não se emprega só nesse sentido, ele é mais amplo. Ainda mais no contexto que escutei essa palavra pela primeira vez. Podia significar que a perna dela estava com fadiga de ficar na mesma posição. Podia ser que o cigarro causava enjôo nela. Ela podia estar desanimada de a perna não curar logo. Para mim aquela palavra se encaixava mais ou menos em algo assim, ou seja, eu a associei a algo ruim para a pessoa, como uma conseqüência.

– Por que você não se senta um pouco?

– Não, eu preciso fumar aqui fora antes. A gente passa o dia inteiro sentado, agora quero aproveitar para ficar de pé...

Ficamos conversando bem uns 20 minutos, ela agüentando firme ali de pé, eu absorvia cada palavra, brincava muito para distrair, para minha felicidade ela e sua tia tinham muita simpatia por mim. Conversamos até o rapaz mais novo da Somália aparecer. Ele descaradamente era encantado pela Aline, fazia uma cara de apaixonado quando a via que dava dó. Aline o desprezava, empurrava-o, fazia cara feia, ele ficava embasbacado. A imagem das pessoas da Somália na Itália não era muito boa, sempre estavam associados à violência, atraso, ignorância. O cara estragou meu papo.

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

65 – Somália.

As coisas iam a todo vapor no terceiro dia, todos estávamos praticamente como uma turma da faculdade, uma intimidade... com certas pessoas até demais. Aqueles três rapazes da Somália começaram a ficar mais à vontade. O com cara de mais novo me pediu meu número do celular, ingenuamente passei a eles pensando que era para algo sério, por que... Logo depois, em plena aula, o telefone tocou, olhei no identificador de chamadas estava escrito ligação privativa, quando atendi escutei uma espécie de apito e se desligando logo em seguida, parecia que a linha tinha caído. Quando comecei a prestar atenção na aula o aparelho toca novamente, leio a mesma mensagem no identificador, quando atendi aconteceu a mesma coisa, aí fiquei esperto. – Será que é um trote? – pensei comigo. Olho para o lado e percebo que o rapaz mais novo logo em minha frente estava olhando para o lado querendo dar risada. Por isso que quando pedi o número dele depois que passei o meu ele não quis dar. Esses três rapazes tinham um comportamento muito estranho, sempre estavam brincando entre eles e de repente ficavam agressivos com algo que não lhes agradasse, gostavam de colocar o dedo em riste para intimidar os demais e logo em seguida voltava a brincar. Não dava para entender sobre o que costumavam conversar porque falavam em seu idioma entre eles, o italiano deles não era muito bom. Até o mais velho deles, o que me ofereceu o café no primeiro dia e que realmente era uma pessoa mais madura já teve um momento raivoso, ele se chamava Zumir e pode-se dizer que possuía um carisma natural. Zumir foi o único que me passou seu número de celular. Rapaz muito consciente, não deixava os outros fazerem coisas erradas, por exemplo, o professor emprestava sua chave para a gente pegar um café na máquina e os outros dois já queriam abusar e pegar mais coisas como salgadinhos só que Zumir não permitia, tomava deles, essa foi a única vez que o vi bravo. Essa chave era um tipo de dispositivo eletrônico daqueles que se conecta em computador (USB), se carrega eletronicamente com dinheiro e depois esse valor pré-carregado é decrementado à medida que se compra na máquina, ao invés de depositar moedas. Era a mesma chave que tinha visto com André no meu primeiro dia no aeroporto de Malpensa. O terceiro rapaz da Somália era sem água e sal, não tinha nenhuma característica marcante, simplesmente andava com os outros e reproduzia suas demonstrações de auto-afirmação ao ritmo do contexto. Ele uma vez me pediu um Euro emprestado, disse que ia pagava depois do almoço naquele mesmo dia. Que cara de pau, depois do almoço voltou a me pedir emprestado. Mas ele não disse que iria me pagar depois do almoço? Nem elaborar uma mentira coesa ele soube fazer direito. Aí passei a eu pedir dinheiro emprestado a ele, dessa vez ele ficou esperto, dizia que iria trazer depois e depois voltava a pedir de novo. Cada um que a gente encontra. Cruzei com esse mesmo cara pela rua outro dia, estava com sua mãe, toda vestida a caráter de seu país, não falava quase nada em italiano, ela veio me perguntar se eu sabia se teria algum certificado no final do curso, levei um tempo até entendê-la, seu filho ajudava, mas não soube dizer se iria ter, foi com eles que aprendi a frase “não sei”.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

64 - quarta-feira.

Que sono me deu nesse dia, aquela garota, a Mercedes, ficou zoando a noite inteira com o intuito de atingir David e parece que se esqueceu que não tinha só ele no quarto, até Estela, mesmo havendo uma cama vaga que pertencia ao Conan continuava dormindo na mesma cama, ficou meio chateada. Aliás, Estela era uma garota perseguida, por isso não dormia sozinha de jeito nenhum. Ela não era do tipo que despertava os instintos mais selvagens nos homens, podemos dizer que era “bonitinha” e simpática. Como eu já disse o problema todo estava na risadinha de sem vergonha que ela tinha, um jeito de menina tímida safada. A única coisa coerente com sua aparência era a timidez. David também atacou Estela, foi antes de eu chegar, ele vivia investindo contra ela, segundo suas palavras. Um belo dia ele a agarrou no quarto, nessa parte Estela não tinha conseguido me explicar direito, a história dela deixou buracos. Um dia Sandra apareceu no quarto e lá estavam os dois juntos, Estela deu a entender que David a agarrou à força, não ficou claro como que deu tempo de Sandra subir e pegar o flagrante. Se Estela fosse a vítima da forma como ela contou não iria dar tempo de isso acontecer, ela poderia ter gritado. O resultado foi que as coisas ficaram mais complicadas. Para mim Sandra se comportava como uma santa. Nunca a vi jogando essa história na cara de ninguém, nem de acusar Estela, ela ficava na dela, parecia que só ter David como companheiro bastava, por isso ela relevava tudo. A cultura deles contribuía muito para essa conformação, era normal virem os homens casados sozinhos e acabarem arrumando uma mulher para cuidarem deles lá, todos viam isso com naturalidade. E não é porque é uma cultura machista, com as mulheres também não haveria censura, a própria Mercedes era um exemplo, nunca ninguém a condenou pelos homens que trazia para sua cama.

Se eu encontrasse Mercedes naquela manhã eu seria capaz de dizer umas poucas para ela. A regra que todo mundo sabe, mas quase ninguém segue é que discussão, bate boca, brigas, nunca leva ninguém a lugar algum, mas também ficar calado e fazer de conta que nada estava acontecendo é que não iria resolver o problema. A grande questão era, o que fazer numa hora dessas? Levar para os donos da casa? Se eu reclamasse com eles, no máximo que poderia acontecer era chamarem a atenção dela e como sempre iria entrar por um ouvido e sair por outro. Eu não via como uma solução duradoura, o que não significa que não deveria ter recorrido a ele antes de tomar outra atitude mais drástica. Eu tinha outra barreira, não gostava de levar meus problemas para ninguém resolver, em algum momento de minha vida eu conclui equivocadamente que qualquer tipo de problema têm que ser resolvido por mim mesmo. Talvez tenha sido naquele lance de quando se é criança que qualquer tropeço que a gente dava a turma caia em cima chamando de dedo duro. Na realidade a conclusão que cheguei nos dias de hoje é que para se resolver um problema tem-se que ir avançando por degraus, começando pelo mais simples e ir recorrendo aos mais fortes à conta gotas até se atingir o objetivo buscado, de repente o primeiro degrau já seria suficiente para resolver ele. Deixar as coisas acumulando é pior, porque quando vem, vem de uma vez só.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

63 – Confianças e mentiras.

À noite eu havia combinado com Elizabeth de a gente ir a uma escola de italiano perto da casa de Federico, ela já freqüentava lá fazia duas semanas, indicada por seus parentes que também fizeram e aprenderam muito. Eu já tinha procurado escola antes, fui à mesma instituição do padre Estéfano, só que eles não me aceitaram lá. Disseram que era para povos de origem não latina. Depois o padre Marco havia me dito que tinham curso de italiano em sua igreja nas quartas à noite, mas ele só trabalhava com bolivianos, naquela época eu pensava que deveria me afastar de gente que não falasse italiano comigo, ainda não sabia que aquilo seria praticamente impossível com exceção do meu curso não-convencional que estava fazendo. Do jeito que Elizabeth falava parecia um curso profissional mesmo, de primeira, tinham apostila, o curso era duas vezes por semana, com construções próprias para isso, embora tivesse me soado muito perfeito, era minha amiga que estava falando. Combinei de me encontrar com ela em Porta Nuova para dali pegarmos o ônibus até a escola que era bem afastado, ficava em direção exatamente oposta da casa dela, atravessando a linha de trem no sentido do padre Estéfano virando logo à direita e seguindo reto toda a vida. Insisti para ela me passar o endereço que eu me virava para encontrar a escola, ela não quis saber, não teve jeito tive que pegar o ônibus com ela. Fiquei lá no local marcado esperando-a, como naquela parte existiam três pontos diferentes não sabia em qual deles deveria ficar, escolhi o do meio que era o errado, ela estava no primeiro e levamos um tempo até nos vermos, eu não podia ficar parado desperdiçando meu tempo e me encostei num canto para ler um jornal. Pegamos o ônibus e fomos. Era muito confortante finalmente ter uma pessoa para contar, em quem confiar, nós dois sentíamos isso. Elizabeth foi uma dessas raras pessoas que cruzam pela nossa vida e que fazem toda diferença, apareceu no momento certo com interesses não conflitantes e podendo um contar com o outro, nós nos ajudávamos e apesar do contraste que possuíamos em relação a praticamente tudo tínhamos confiança mútua um no outro. Infelizmente quando chegamos à escola estava tudo fechado, Elizabeth não soube explicar porque, ela ainda não estava entendendo nada de italiano, e não percebeu o recado que haviam passado sobre aquela semana. Para não perdermos a viagem fomos à casa de Federico, eu ainda não o conhecia e naquele dia não pude conhecê-lo tampouco. Só estava sua cunhada, outra irmã de Elizabeth que vivia ali com Fede, sua esposa, seu filho e mais uma família de bolivianos, essa raça estava por toda parte. Com Elizabeth vivia um casal de bolivianos também, davam uma dor de cabeça para Pilar que ela não sabia mais o que fazer. Ficamos um tempo ali, mais Elizabeth que trocou umas palavras com sua irmã e nos fomos. Tentei me despedir dela ali mesmo para poder voltar à pé, ela não deixou, insistiu e fez questão de me dar um passe, aí não teve jeito, voltei com ela. O ônibus passava bem na frente de casa e por isso desci antes que ela, nós combinamos de nos encontrar no outro dia para eu apresentá-la ao padre Estéfano, depois de meu curso. Ela ia tentar combinar com Federico também.

Já na casa, aquela noite foi terrível, Mercedes estava insuportável, havia discutido com David de novo antes de eu chegar e o clima no quarto estava tenso, Mercedes falava: – Devolva meu celular que você roubou seu rato! – O rato... Quero dizer, David ficava calado e fazia de conta que não era com ele.

Ela não conseguia esquecer a história do celular. Eu não conseguia entender como ela podia estar tão segura de que foi David que fez aquilo, é tanta gente que entra e sai daquela casa sem nenhum controle. Cansei de ficar sozinho lá, sem ninguém por perto, já cheguei da rua com as portas abertas sem ninguém, ou seja, oportunidade para um mal intencionado não faltava e era só um beber um pouco mais para se esquecer da vida e esquecer de seus pertences. Eu tinha consultado Marcos se podia ser David quem fez aquilo, Marcos confirmou, disse que no dia que ocorreu o delito David estava sozinho lá em cima e Mercedes deu falta do aparelho logo em seguida, só que isso não conta nada, o próprio Marcos poderia estar tentando salvar a própria pele me confundindo. David era um dos únicos que trabalhava ali e ganhava muito bem, igual a um trabalhador italiano, mais porque não pagava imposto, estava irregular. Qual o motivo que ele teria para fazer aquilo?

sábado, 11 de novembro de 2006

62 – Especialista em termos técnicos.

Todos os dias que se sucederam ao curso, na hora do almoço, eu ia ao supermercado mais próximo que eu havia encontrado da escola, ficava na avenida que ia dar na estação de trem passando por Porta Nuova, eu tinha que voltar atravessando o túnel D'Oro em direção ao centro, era um supermercado de pequeno porte à esquerda. Todos os dias eu passava ali na hora do almoço e escolhia uma maça, pagava e ia comer ali perto em um dos bancos ao longo da calçada, desse jeito eu tive a oportunidade de conhecer a rotina de algumas pessoas naquele horário. Sempre tinha uma senhora com roupas modernas que levava seu cachorro para passear naquele horário por exemplo, aliás, na hora do almoço tinham umas três pessoas que levavam seus cachorros para passear. Eu encontrava também um casal de namorados que sentava numa praça, um pouco mais adiante, onde ficava um hotel em frente, eles namoravam sempre ali. Foram detalhes que ajudaram a construir uma noção mais ampla do modo de vida daquele país, pelo menos daquela cidade, já que o povo de lá tem costume de achar que cada cidade era como se fosse outro mundo, o que não deixava de ter uma certa verdade, basta olhar para os diferentes dialetos que cada lugar tinha.

As aulas se seguiram por todo o dia, como o previsto, à medida que avançava as coisas pareciam se repetir, o que é fundamental para fixar na memória, longe de mim reclamar das repetições. A maioria das palavras eu ia absorvendo na base da dedução, como a tradução para o aço, por exemplo, tudo o que se introduzia tinha aço no meio chegou uma hora que só podia ser isso, outras palavras mais pertinentes eu consultava o dicionário, não era freqüente eu fazer isso. Nos intervalos eu procurava conversar com cada um isoladamente, ficava muito com Aline, claro uma garota que parecia estar ainda na adolescência era uma de minhas vítimas prediletas, a curiosidade que se tem nessa idade vence o enfado de ter que ficar explicando e repetindo para me fazer entender e para responder minhas confirmações das palavras que dizia e para me corrigir. Eu sempre dizia a ela. – Nunca irei me esquecer de Aline, a garota que me ensinou italiano. – Ela ficava toda cheia. Eu não estava mentindo. É verdade e fazer com que ela saiba disso só vai motivá-la a me ajudar mais ainda. Já nas paradas que se dava dentro da sala de aula eu concentrava minhas atenções em Alex, que se sentava do meu lado, o cara também não se importava, sempre que ele ia de carro me dava uma carona de volta para casa, ele era praticamente meu vizinho na via Quarenghi, não era de muito papo não, gostava de escutar. Só que o que mais acontecia era eu escutar, escutava o professor a maior parte do tempo e sempre escutava dona Marta, e não adiantava eu tentar falar, ela simplesmente me ignorava, nem se dava ao trabalho de fazer de conta que estava me escutando, só me restava escutá-la mesmo e me limitar a responder suas eventuais perguntas. Era engraçado isso também, muitas vezes eu não me dava conta de que ela tinha me feito uma pergunta, só percebia quando ela parava de falar e ficava me olhando.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

61 – O curso continua.

No dia seguinte tomei o costumeiro café da manhã, peguei minha mais nova companheira que iria passar a me acompanhar em minhas jornadas diárias nos próximos cinco meses aproximadamente, a pasta branca, e parti para minha aula. A história se repete, não me lembro de ter passado um único ano sem eu freqüentar uma sala de aula, sem estar estudando alguma coisa. Quando eu era criança e tomei consciência dos níveis na educação que uma pessoa pode passar durante a vida eu imaginava que iria parar depois que terminasse o segundo grau. Desde então eu comecei a me dar conta que a realidade não é do jeito que a gente imagina.

Dona Marta faltou no segundo dia, os italianos já estavam mais integrados e a falta dela motivou Luiggi a perguntar dela para mim.

– E a sua amiga? Desistiu?

– É eu acho que sim. Ela parecia meio desanimada.

– Então você é do Brasil? E o que veio fazer para esses lados?

– Conhecer o país de meus antepassados.

– Se fosse eu não sairia de lá nunca, tão cheio de mulheres quase sem roupa. Uuuu!

– Mas aqui também têm meninas bonitas... Você é da Alemanha?

– Não. Sou daqui mesmo. Porque?

– Seu sotaque é carregado...

– É realmente aqui é meio diferente mesmo, depende da região.

Todos escutaram atentos à nossa conversa até quando respondi a uma pergunta sobre quanto tempo que eu já estava lá, foi Alex quem perguntou.

– Umas três semanas mais ou menos. – Respondi.

Tinham mais duas colegas italianas na turma, Aline a garota de bengalas e sua tia Marisa. Marisa, uma mulher de meia idade, era daquelas pessoas revoltadas com o sistema, não se conformava com a realidade que fazia parte, crítica em tudo, adorava debater. Qualquer assunto um pouco mais diferente que o professor abordava, lá vinha ela debater. É relativamente fácil encontrar pessoas como Marisa, todos nós temos um pouquinho da síndrome dela em diferentes níveis, mas Marisa era a pessoa em vida que encarnava perfeitamente a caricatura da pessoa crítica, talvez a genética possa explicar isso. Por exemplo, assim que dei a resposta Marisa imediatamente rebateu.

– Que? É já está falando assim? Perfeitamente?! – Ela também gostava de exagerar para ser retórica – E nós aqui sofrendo para falarmos o próprio italiano e blablabla...

A partir daí já não dei conta de acompanhar mais o motivo da indignação dela. Todas essas conversas que tive foi à custa de muita paciência por parte deles, eles iam me corrigindo e eu mesmo percebia que eles entendiam o que eu queria dizer, mas não me davam a realimentação adequada para saber se usei a palavra exata ou similar, então para não incorrer nessa imprecisão eu toda hora perguntava se a palavra estava certa. Eu tinha consciência de que não poderia abusar nessas perguntas, pois poderia deixar a conversa enfadonha e mais demorada, para calibrar o ponto certo entre me certificar das palavras e deixar passar algumas palavras que tinha dúvida não era simples, acredito que tive êxito e não enjoei demais meus interlocutores, com o tempo a gente vai aperfeiçoando melhor a técnica de motivar as pessoas a nos ajudar a falar as palavras adequadamente, é um ótimo exercício de relacionamento com as pessoas.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

60 – Uma mão.

Após o almoço assistimos o noticiário e Gláucio quis ir jogar Play Station 2, dei mais um tempo por lá e me despedi dele.

– Bom... Deixa-me ir... Daqui a pouco vai recomeçar meu curso.

– Já vai cara? Valeu ter te conhecido.

– Brigadão por tudo viu? Tava muito boa a comida.

– Eu vou ter que ir para Brescia nesse sábado, é uma cidade vizinha daqui, para receber de uns caras por uns serviços que faço para eles de montar estandes em feiras de exposição de vez em quando. Eles sempre estão chamando para eu ir e nem sempre dá por causa do meu trampo. Você não quer ir comigo? Aí eu te apresento para eles te chamarem. Que tal?

– Beleza. Um trabalho era tudo o que eu estava precisando... Nesse sábado né?

– Isso, eu vou combinar com eles direito e depois te ligo para confirmar o horário, possivelmente vai ser logo de manhã, que à tarde eu tenho que trabalhar.

– Valeu! To te esperando... Até mais.

Mais uma esperança à vista, uma hora eu tenho que engrenar. Já voltei mais animado para meu curso. Cheguei atrasado, o professor já estava “discursando”. Todos os intervalos que tínhamos eu ficava enroscado com dona Marta, só ela. Eu temia perder a chance de conhecer os outros, no primeiro dia todos ficaram meio na sua e, portanto não tinha tanto problema, mas não era possível que ninguém gostava de conversar. De tanto que dona Marta falava a mensagem que ela tentava me passar entrava por osmose, pura dedução. Vinham-me palavras soltas que conseguia captar, muito esparsamente.


Na casa todos me perguntavam como tinha ido. David tentava conversar, só que eu não conseguia agir naturalmente. Creio que ele percebeu o meu desconforto com aquele incidente com Sandra, então ele me veio com uma história estranha:

– ... na última vez que minha mãe me enviou correspondência ela colocou dois desses chapéus e dois desses bonecos, ela mesma fez com suas próprias mãos. Disse-me que fez pensando em mim, para que eu me recorde dela.

– Nossa! Muito legal! Eu acho muito importante essas coisas feitas especificamente por uma pessoa para outra. São coisas simples assim que deveríamos valorizar. Ainda mais quando saem tão bem feitos como esses aqui. Parabéns.

– Eu queria que você ficasse com um de cada para você.

– Para mim? Você tem certeza? Sua mãe fez pensando em você...

– Eu sei, mas tenho certeza que ela vai entender.

– Puxa! Só posso dizer obrigado... Sem palavras...

Fiquei um tempo admirando meus regalos. Aquilo realmente me tocou, esse David sempre me aprontando surpresas. Se Sandra já tinha perdoado ele, eu era que não deveria me doer. Devia muita coisa a David para comprar uma briga com ele que nem me pertencia.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

59 – O primeiro carioca.

Já tive a oportunidade de morar praticamente em todas as grandes regiões do Brasil, com exceção da região Norte, só no Nordeste foram em dois estados diferentes, na região Centro-Oeste em duas cidades diferentes dentro do imenso Mato Grosso e pelo que me lembro, quero dizer pelo que não me lembro, nunca tinha tido um amigo carioca! Conheci alguns bem distantemente, eram apenas conhecidos. Ainda por cima eu tenho o maior orgulho de ser paulista. Acontece que o sotaque carioca realmente soa estranho para a gente, pelo menos para mim faz sentido a cisma que existe com os cariocas, boa parte pode ser explicada pelo sotaque em combinação com qualquer outra coisa, por menor que seja eu acho que já é suficiente para criar problema. Se eu tivesse conhecido outra pessoa antes de Gláucio o estrago seria grande, eu a chamava de Vaubênia, mas seu nome verdadeiro é outro, mulher terrível, sem classe, vou falar sobre ela mais para frente, a tratarei com seu nome original, tentarei manter a imparcialidade com ela também, por mais tentador que seja não ser. Para a felicidade de todos e para o meu bom relacionamento com os futuros cariocas que ainda virei a conhecer e que já conheci durante esse período, o primeiro carioca que conheci mais de perto era um cara genteboapracaramba. Cheguei lá ele estava assistindo TV, só me esperando para o almoço, tinha preparado uma comida italiana de primeira. Não tinha ninguém na casa, depois, quando já tínhamos terminado de almoçar é que chegou um garoto para comer. O Gláucio deu um sermão no garoto alertando sobre a importância de se lavar as mãos antes de comer, o garoto era muito simples e concordou com ele na hora. Aquele evento reforçou uma constatação empírica sobre a higiene dos italianos, não me lembro de ver um só lavar as mãos depois de sair do banheiro. Gláucio conversava com todos ali em italiano, não sabia espanhol. Já fazia um ano que ele estava na Itália e já misturava palavras e expressões italianas nas conversas, só para se ilustrar a falta de brasileiros que tinha ali, naquela altura eu ainda não sabia que Bérgamo era uma exceção, mesmo assim uma exceção bem fraca, pois de vez em quando se encontrava algum conterrâneo pelas ruas. Outro dia estava eu andando com Marcos na rua das lojinhas de telefone e tinha duas moças brasileiras na nossa frente conversando, até hoje não entendo porque não as abordei.

Gláucio havia chegado primeiro em Roma, foi trazido pelos pais de uma ex-namorada para trabalhar no restaurante deles, mas aí o negócio não deu muito certo e ele se desentendeu com a turma por causa da garota e se entendeu com uma bergamasca que o trouxe para Bérgamo, que por sua vez se desentendeu com ela e acabou se arrumando por um mês no restaurante onde trabalhava, disse que foi o mês do cão porque tinha que ficar a noite inteira trancado no restaurante para não despertar a atenção dos vizinhos, debaixo de um calor de matar até que se encaixou na casa de dona Margaret. Embora nós dois não tivéssemos muita coisa em comum para conversar isso não tinha importância para ele, o que importava era ajudar da melhor forma possível. Muito mulherengo, só queria falar sobre mulher, dizia que as italianas tinham algum "negócio" com a cor dele, era assediado em todo lugar, ainda segundo ele, era normal ser abordado nos bastidores do restaurante por alguma fã querendo marcar um encontro ou simplesmente para dizer como ele era "carino". Quando a gente saia na rua ele encarava mesmo e fazia questão de mostrar que o negócio dele era mulher. Aquele jeito dele me lembrava muito um tio que tenho, se não fosse pela cor eu podia jurar que ele era um filho bastardo do meu tio.

Assim como a esmagadora maioria que se aventura sozinho em um país estrangeiro sofreu muito com a incerteza e privação das pessoas que gosta, deixou uma filha nova no Rio, sempre enviava dinheiro para ela. Nunca mais esteve com ela desde que partiu.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

58 – Simbologia.

Apresentações feitas o professor começa a aula propriamente dita, foram tantas palavras novas que aprendi só no primeiro dia que sou capaz de lembrar ainda hoje quais foram. Sempre existe um paralelo entre o cotidiano da gente e os conceitos de engenharia, basta lembrar da quantidade de palavras aprendida no primeiro dia e o que se sucedeu nos dias seguintes que imediatamente me remeto a um gráfico, velho conhecido nosso, onde a curva inicial cresce rapidamente num primeiro momento, mas logo em seguida ela tende a oscilar em torno de uma reta bem abaixo daquela subida inicial, nós chamamos esse fenômeno de subamortecimento, é usado principalmente em sistemas de controle. Muito boa essas teorias de engenharia, todo mundo deveria fazer, fica mais fácil abstrair a vida com elas. Tomara que meus colegas da graduação não leiam isso, senão eles vão querer me internar num hospício. No primeiro dia a gente fica aceso, não quer perder nada, cada suspiro do professor era registrado, ele ia falando e eu repetia suas palavras no meu pensamento. Nós tínhamos intervalos a cada 50 minutos aproximadamente, já no primeiro fomos todos lá para fora, todos tinham que se conhecer, eu fiquei enroscado com dona Marta. Ah se ela tivesse uma voz clara. Naquela altura eu ainda não sabia direito se o problema era eu que não tinha vocabulário ou ela mesmo. De repente o celular toca. Toda vez que ele tocava era a maior tensão, meu coração disparava, se fosse meu primeiro emprego eu nem sei o que faria, olhei no identificador era de outro celular que não estava registrado na lista de meus contatos.

– Alô.

– Oi, é o Fabriciu aí? – Alguém me pergunta em português.

– Sim? Pois não? Quem é?

– Aqui é o Gláucio. A Margaret disse que você passou aqui hoje e ela me passou seu número.

– Oi! E aí? Passei mesmo. Fui para te conhecer. Agora estou em um curso, estou no meu intervalo.

– Vem aqui na hora do almoço para a gente trocar umas idéias?

– Beleza. Tá combinado. Eu fico livre ao meio dia e vou direto para aí.

– Combinado, até mais.

Quando alguém toma uma iniciativa dessas de ligar sem conhecer ele está demonstrando todas as melhores impressões do mundo, não era necessário fazer aquilo, eu já tinha dito à Margaret que iria e mesmo assim ele demonstrou preocupação, cuidado. Nessas horas a gente percebe a importância dos pequenos gestos.

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

57 – Minha turma.

Uma das primeiras coisas que o professor disse foi sobre a máquina de café.

– Ah sim! Tomem cuidado com a máquina do café ela não volta troco, portanto coloquem a quantia justa.

– Eu descobri isso, aconteceu comigo. – Disse o rapaz árabe que me ofereceu um copo. Foi isso que ele estava me dizendo lá embaixo. Eu não entendi o que ele disse, foi uma dedução lógica. Já no primeiro dia eu percebi uma incrível melhora no meu vocabulário! Incrível mesmo, me leva a pensar que coincidiu com o fato de eu já ter acostumado meus ouvidos com a sonoridade do idioma e dessa forma dava para captar melhor as palavras. No começo do curso calculo que dava para entender 40% das frases. Ajudou muito a voz do professor, muito clara.

Do meu lado esquerdo estava sentada uma senhora, por volta dos 55 anos creio, dona Marta, já lá embaixo eu havia conversado com ela, não conseguia entender ela, a voz era confusa, baixa, rouca, foi uma judiação porque ela adorava falar, falava sem parar, mesmo assim eu consegui extrair expressões importantes dela como o inesquecível "non me friega niente", ela adorava falar isso, principalmente quando falava do filho, parecia que ele não ligava muito para ela e, portanto não lhe "fregava niente" esse jeito do filho para ela. Dona Marta não tinha nada de uma velhinha angelical, tirando a aparência, era prática, pés nos chão, estava desempregada fazia vários meses mesmo assim não consegui entender que diabos ela estava fazendo ali, era difícil de imaginar uma senhora como ela trabalhando no chão de fábrica, ela havia me explicado seus motivos só que não entendi nada. Do meu lado direito sentou-se Alex, originário da Calábria. Assim como o nordeste, a região sul é a mais pobre da Itália e é onde as pessoas são mais receptivas, até nos dias de hoje a máfia sobrevive por lá. Alex representava bem a fama de sua terra, conversava numa boa sempre gesticulando e fazendo caretas como aqueles atores de cinema representando mafiosos. Alex tinha deixado um trabalho como guarda noturno, não deu conta do recado tinha que trabalhar durante toda noite, fazia apenas um mês que ele parou, pedi para ele o endereço para eu procurar um trabalho para mim lá, ele disse que era muito duro, mas falou que ia passar outro dia, tinha que procurar na sua casa o contato. Na minha frente estavam os três jovens árabes, na realidade eles eram da Somália, eles mal tinham 18 anos de idade, parecia ser até menos. O primeiro de todos, o único da primeira fileira chamava-se Carlos, ele estava para se casar no próximo mês, era meio calado, ficava na dele, mas não se isolava. Atrás de mim sentava Luiggi, o único Bergamasco da turma, ele tinha um sotaque tão pesado que até eu conseguia perceber, lembrava muito alemão, o jeito como ele arrastava o "erre", era jovem, no máximo 20 anos, conversava pra caramba, para a minha felicidade. Finalmente na última fileira se alternavam alguns africanos que vinham esporadicamente, apenas para conseguir um certificado, a irregularidade era tanta que não consegui memorizar um único, e só fui perceber melhor quantos deles eram no último dia quando vieram, creio que todos, para pegar um certificado, alguns vinham e chagavam atrasados, e já no primeiro intervalo caiam fora. Descobri lá que o curso era por período integral. Só não dei pulas de alegria porque senão ia pegar mal, minha preocupação era que eu teria de parar de procurar emprego, mas é como dizem, cada escolha implica em uma renúncia.

sábado, 4 de novembro de 2006

56 – O curso!

Nesse dia não tomei café da manhã com meus amigos, não conseguia fazer de conta que nada tinha acontecido na noite anterior, minhas relações com David se esfriaram um pouco por um tempo. Sai cedo para garantir que eu não fosse perder nada em meu primeiro dia. Havia estudado antecipadamente, como sempre, o itinerário até à escola. Antes eu tinha de passar na casa de Margaret para conhecer o brasileiro que morava com ela, só que ele ainda estava dormindo e combinei de passar na hora do almoço depois do curso. Pelo caminho que estudei eu tinha que atravessar o túnel d’Oro, mas eu esqueci de prever a passagem pela casa de Margaret e por causa disso dei uma volta maior para não correr o risco de eu me perder. Esse túnel se encontrava na base da montanha de Città Alta e depois eu tinha que seguir mais uns dois quarteirões até avistar a escola. Foi tiro e queda, lá estava ela, era no estilo de uma dessas escolas antigas que tem pelo Brasil, para o ginásio. Entrei pelos fundos, pelo estacionamento. Não é necessário dizer que era cedo demais, não tinha ninguém ainda, quando entrei no banheiro até despertei a curiosidade de alguém que estava chegando, fiquei por lá reconhecendo terreno, tinha uma daquelas máquinas de café, a tentação de colocar moedas por um café foi grande, mas resisti como Dom Quixote. Dali um tempo surge um rapaz com cara de que era para fazer o curso, parecia árabe, balancei com a cabeça, ele respondeu e seguiu reto, foi para a máquina de café, depois de um tempo ele volta com dois copos e me diz algo, não entendi direito o que estava me dizendo, sorri para concordar, então ele me oferece um copo para mim, seja o que for valeu era tudo o que eu queria naquele momento. O movimento aumentou e começam a chegar mais gente. Logo chegam mais dois rapazes que também pareciam árabes e cumprimentam o primeiro e logo conversam em árabe, acredito eu. Depois vejo passar uma senhora com uma garota de bengalas, como as de Mercedes, logo uma senhora idosa e outras pessoas, mas alguém para nos orientar nada. A hora estava chegando quando finalmente apareceu um grupo de senhores para nos buscar e nos levaram para uma sala lá em cima. Eu busco um lugar bem no centro da sala, assim tenho mais chances de conversar com todos, afinal meu objetivo central ali era aprender italiano, nem sobre qual assunto exatamente eu sabia do que o curso iria tratar, eu tinha uma impressão de que estava relacionado com indústria, não estava seguro. Cada um tinha uma pasta branca em seus respectivos lugares, com materiais dentro, uma apostila, calculadora, caneta, bloco de anotações, folders explicativos. Na apostila fui conhecer o nome do curso “Addetto Macchine Utensili”, era relacionado ao princípio de funcionamento das máquinas industriais. O professor chamava-se Estefano, um senhor muito educado e polido, se apresentava com muito orgulho, para mim fazia uma pose de falsa modéstia, era por causa dos olhos dele, quando relatava sobre seu passado profissional ele fazia com um sorriso indisfarçável em postura ereta e fechando os olhos lentamente. Com o tempo deu para perceber que era o jeito dele, na verdade era uma excelente pessoa, comprometida com o aprendizado de seus alunos e disposto a ajudar no que fosse possível, uma pessoa muito linda. Ele apresentou o curso, relatou sobre sua experiência de 30 anos no chão de fábrica, não tinha curso superior, tudo o que ele ia ensinar foi aprendendo com a mão na massa, tinha muito orgulho de seu histórico de trabalho e demonstrava paixão pelo que fez trabalhando com tornos mecânicos.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

55 – O curso.

Mercedes estava conversando sobre deixar a casa, não ficou muito claro se o patrocinador dela que queria transferi-la para a casa de sua mãe ou ela que estava querendo ir, de acordo com suas conversas pelo celular dava para concluir que era o cara que estava querendo. David e Sandra iam ficar aliviados quando souberem, imaginei, só faltava saber o dia que essa maravilha iria acontecer. Eu já não conseguia puxar conversa com ela mais, só conversava o mínimo necessário para manter o formalismo. Para completar a novidade de mudanças, Conan estava se mudando para o apartamento do lado, o lugar de onde Mercedes foi obrigada a pular a cerca de volta para o nosso pátio, naquele dia que estávamos comemorando o aniversário de Jorge e que ocorreu toda aquela confusão. Parece que todos que vivam lá antes deixaram o apartamento e Conan estava assumindo o lugar sozinho, de um lado eu achava ótimo assim o quarto iria desafogar um pouco, só queria saber por quanto tempo iríamos ficar com menos pessoas. Não fazia sentido Conan deixar seu espaço, ele gostava de gente, precisava de alguém para compartilhar suas cervejas e dormia igual uma pedra, era difícil despertar com aqueles barulhos que Mercedes fazia, não fazia questão de luxo nenhum e privacidade era de menos para ele, fora o dinheiro que iria gastar para alugar sozinho um lugar, afinal ele estava lá justamente para juntar dinheiro com o mínimo de gasto e voltar para o seu país, alguma coisa não se encaixava ali, nem brigado ele saiu. O melhor que eu podia fazer era dormir mesmo para o primeiro dia de meu curso na manhã seguinte. Só que David chegou e mais uma vez de fogo, o meu alarme já apitou, nunca vi o cara assim e de repente acontece dois dias consecutivos! É difícil ignorar e não imaginar que alguma coisa estava acontecendo. Naquela altura eu ainda estava embaixo me colocando a par dos acontecimentos do primeiro final de semana fora, foram muitas novidades de uma vez.

Lá em cima enquanto escrevia meu diário e recarregava meu palm, o meu estimado casal de amigos discutiam, não dava muita bola porque Sandra adorava cismar com David por qualquer coisinha, era um tipo de charme, acredito, David era muito brincalhão e sempre dizia coisas para provocá-la aí ela sempre vinha com a seguinte pergunta "Que cosa?!", é assim que se pergunta em italiano, tem uma sonoridade bonita, para cada declaração de duplo sentido que David soltava para provocar, ela vinha com essa pergunta, eu já estava acostumado com esse jogo deles e nem me liguei se era sério a discussão ou não, de repente David solta uma bofetada na cara de Sandra, aquilo me deixa assustado, largo tudo e fico atento neles, não disse uma palavra, não estava compreendendo o que estava acontecendo, de repente ele dá outro tapa nela, dessa vez eu não podia ficar calado tinha que interferir de algum jeito.

– David! Eu não posso permitir que você faça isso. O que está acontecendo com você?

– É ela. Você não percebe que fica aí com tonteiras sem sentido?

– Mas nada justifica essa brutalidade. Pare já com isso que não está certo.

– Para mim basta David, vou sair daqui agora. Não agüento mais essas coisas. Adeus.

– Cala-te já. Venha aqui e deite-se, você não vai sair daqui não. Venha já! Venha!! Venha!!!! VENHA!!!!!!!

Aquelas palavras não saem mais de minha cabeça, ele pronunciava em italiano "vieni". Ela acabou voltando e deitou-se de costas para ele, aí ele me soltou um daqueles sorrisos característico fiz uma expressão de decepção e me virei também para dormir, era muita coisa para minha cabeça num só dia, ainda tinha que me preparar com a subida da Mercedes e a zorra que ela fazia.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

54 – A mãe de todos os colombianos.

Dona Margaret era uma mulher muito bondosa, todo mundo nesse mundo que eu começava a fazer parte a venerava, e ela não era uma senhora muito idosa não, devia ter por volta dos 45 anos, tinha três filhos, o mais velho chamava-se Durval, cara gente boa, da mesma categoria que David, pêro um pouco mais festeiro, o filho mais novo tinha acabado de passar por uma experiência traumática que chegou a afetar a cabeça, não estava conversando com ninguém e tinha que ficar em repouso, ele sofreu um acidente de carro e quase morreu, vários amigos morreram, acho que três, o que mais mexeu com ele foi ele estar dirigindo, o do meio era normal, sem muitas novidades, não tive muito contato, só naquele dia. Com eles vivia, veja só, um brasileiro. Carioca da gema, Gláucio Abede, pena que ele não estava, nos finais de semana era o dia mais ocupado dele, trabalhava como cozinheiro em um restaurante, fiquei de voltar no dia seguinte para conhecê-lo, combinei com Margaret.
Chegamos e Pilar já estava lá, Maria que tinha ficado na casa com o filho de Federico também já tinha chegado, ela veio de ônibus. Indagaram porque demoramos tanto. Elizabeth respondeu emburrada que tínhamos vindo a pé. O namorado de Pilar estava lá, se chama Hernan, era do mesmo peso que sua namorada, aliás, as duas parentes de Elizabeth eram bem pesadas. Passamos uma boa parte da tarde ali conversando, numa reunião quase familiar, eu ainda estava me adaptando ao sotaque deles e por isso não acompanhava muito a conversa, e Hernan também, pois só falava italiano e não tinha a menor vontade de aprender espanhol, as duas sempre brigavam com ele para ele se esforçar, não adiantava. Depois de um tempo Durval nos convida para sairmos os três para assistir a uma partida de futebol ali perto com os amigos dele. Esse, aliás, é o carma de um brasileiro que não gosta de jogar, a primeira coisa que perguntam é se sabe jogar, e todos olham como se fosse uma obrigação em dizer que sim, só saber não é suficiente tem que ser bom também para satisfazer à imagem que todos têm do Brasil. Já até me acostumei com a reação dos outros quando eu dava a resposta, com o tempo fui até aprimorando a técnica de responder, tem que ser abordando logo de cara o que eles vão argumentar com a resposta, "Vocês estão olhando para uma exceção.", ou "Aproveitem bem porque é muito raro encontrar um brasileiro que não gosta disso.", ou ainda "Querem um autógrafo de um dos únicos que não liga para futebol?".
Quando chegamos no campo, já tinham fechado o portão e todos estavam no lado de fora conversando, era um mosaico de pessoas de todo quanto era canto dos países da América Latina e só eu como representante do Brasil, muita gente e muitos bebiam cerveja, mas numa boa, sem exageros. O irmão do meio de Durval estava lá com seu carro novo, ele era do mesmo nível de sua família muito sociável. Naquele começo de noite veio uma lembrança forte dos meus tempos no México quando saia com meus amigos para jogar beisebol e depois ficávamos do lado de fora do campo à noite para tomar, todos conversando em espanhol, rindo, sem brigas. Jogando conversa fora. Não se via um instinto de entrosamento assim entre os italianos, eu sempre passava pelos bares depois do expediente, se encontravam um grupo ou outro tomando vinho, mas tudo muito formal, sem brincadeiras e risadas. Não que eu esteja condenando ou dizendo que eles eram errados, quando se é criado desde novo dentro de um estilo de comportamento, acaba-se estranhando outros diferentes daquilo que se está acostumado a viver, talvez os italianos vissem aquele grupo de pessoas reunidas no qual eu fazia parte como um bando de encrenqueiros, podiam nos encarar como provocadores. Nunca se sabe o que se passa pela cabeça dos outros.
Já estava ficando tarde e Durval estava querendo combinar de irmos a uma boate, eu não estava com a menor vontade de ir, no dia seguinte seria o dia do meu esperado curso de italiano, digo... profissionalizante e tinha que descansar para aproveitar bem o dia. Despedi-me de todos e me retirei.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

53 –Uma pausa boliviana.




Aquele dia foi uma das poucas vezes que eu tinha visto David de fogo, mesmo assim ele não perdia aquele sorriso característico que tinha. Durante a noite, mais bagunça, dessa vez houve algo diferente. Escutava a voz de um rapaz, jovem, rindo. Uma risada característica das pessoas portadoras de retardamento mental, e mais baixo um pouco ouvia outras pessoas da casa que acompanhavam essa risada, entre elas Mercedes e consegui distinguir também a voz de Sanchez. Entre as gargalhadas eles conversavam, senti certa tensão naquilo. O rapaz falava:

– Dããããã... Vocês não sabem do que sou capaz... – E riam.

– Não duvidem de mim... – E riam.

– ... vocês querem ver? – E riam.

Primeiro ele ria, seguido de Mercedes e logo os demais acompanhavam eles, sempre seguindo este padrão. Dava a impressão de que não queriam contrariá-lo. Deixei pra lá e tentei voltar a dormir, mesmo preocupado de que poderia ser alguém perigoso e sobraria para a gente lá em cima. Finalmente consegui dormir. No outro dia sou despertado com a voz de Maria, em um tom de voz que nunca imaginei nela.

– Fredy? Acorda. Você não é bem vindo nessa casa. Depois de tudo o que aprontou como tem coragem de aparecer aqui?

Mmmmm... nhãnhã... – Ele ficava resmungando jocosamente.

– Você pensa que não sabemos que foi você quem quebrou o vidro do carro para roubar as cervejas de meu esposo? Nós sempre te recebemos bem, mas não podemos confiar em você mais, mesmo sendo filho de Marina. Ande. Vá embora daqui. Antes que meu marido chegue e aí sim vai haver um problema bem grande aqui.

Então ela se retirou e Fredy logo em seguida foi também. Mais uma vez Mercedes não estava na cama, mais uma vez não percebi nada a noite inteira, mais uma vez... Todos se despertaram aí David me convidou para sairmos até a feira para comprar uns quitutes bolivianos que lá vendiam. A feira funcionava naquele estacionamento suspeito que quase entrei em pânico quando estive com Marcos. O salgado, que se chamava Saltena, era até gostoso, tinha um recheio com frango, para variar, e legumes. Tudo o que os bolivianos fazem tinha que ter frango, acredito que aquele seja o prato principal deles, o pior é que nunca me acostumei com o tempero deles. Ou seria melhor dizer a falta de tempero deles? Lá conversamos com alguns conhecidos de David. Quando estávamos voltando passou uma Ferrari rugindo do nosso lado, David ficou fascinado, eufórico. Dei um tempo na casa conversando com o pessoal, naquela altura Jorge já tinha chegado e estava comentando sobre Fredy, ele estava bravo. Brinquei com as crianças para praticar um pouco mais de italiano com elas e então parti de volta para a casa de Elizabeth, dessa vez era mais tarde. Quando cheguei, ela estava terminando de preparar o almoço. O sobrinho dela, filho de Federico estava lá, um garoto da mesma idade do meu filho, ele teve que interromper os estudos

por causa de sua ida à Itália, elas estavam se queixando de que ele era muito agitado, mas me pareceu educado. Lembrou-me muito de meu filho. Quando terminamos, fui com Elizabeth a uma casa de telefone que tinha ali perto para ela ligar para a Colômbia. De lá saímos para dar uma volta pela cidade, foi quando ela se lembrou da casa de Margaret e que Pilar tinha dito a ela que iria para lá mais tarde. Resolvemos ir, o problema era que Elizabeth só andava de ônibus e eu não, ela não gostava muito de caminhar, mas não teve outro jeito fomos a pé. Até hoje não consigo entender como fui me dar tão bem assim com minha amiga, nós éramos exatamente o oposto um do outro e ela tinha uma característica q

ue me incomoda nas pessoas, era muito nervosa, ficava brava por qualquer coisa, só que com ela eu não ligava, eu conseguia entender seu jeito.