sábado, 2 de dezembro de 2006

78 – Espertalhões.

Com o sangue quente fica mais fácil caminhar, quando se dá conta já chegou! Toquei o interfone, esperei um pouco e nada. Tentei mais algumas vezes à toa. – Perdi a viajem! Que azar! Caminhada bate e volta não vale, vou sentar aqui em frente ao ponto de ônibus e dar um tempo para ver se alguém aparece. Talvez eles possam estar na casa do parente deles aqui perto. – Resolvi esperar até dar a hora do almoço lá no seminário, faltavam poucos minutos e o refeitório não era muito longe dali, ficava em um terço do caminho da via Quarenghi até onde me encontrava naquele momento.

O chato de se esperar é que qualquer movimento mais brusco me forçava desviar a atenção para ver se era alguém que eu estava esperando atrapalhando na minha leitura da apostila de italiano. Estava na metade dela e já tinha aprendido várias palavras. O tempo passou e nada, só para desencargo de consciência toquei o interfone mais uma vez antes de ir almoçar. Nada. Com sorte depois do almoço eu poderia encontrar alguém.

Parece que no sábado vem mais gente. Mesmo chegando mais cedo a fila já estava grande. É duro ali, além dos horários serem fora de hora o espaço era pequeno demais para a demanda então eles atendiam por etapa, entravam as pessoas, almoçavam e depois entrava a próxima turma. Além disso, boa parte da comida acabava cedo e os últimos ficavam sem muitas coisas que tinha no começo, pelo menos ninguém deixava de comer. Naquela época eu não tinha o pensamento tão crítico assim, só de poder contar com aquela ajuda sem nenhuma contrapartida em troca eu pensava que seria chorar de barriga cheia. O negócio não é bem assim.

Naquela fila existiam os espertalhões "a la Brazil", quando a gente chega tem relativamente poucos, só que à medida que nos aproximamos da porta vão aparecendo pessoas de todos os lados ocupando as vagas supostamente guardadas pelos companheiros, os russos eram especialistas nessa modalidade, começou com duas senhoras, loiras, que estavam quatro pessoas à minha frente, essas quatro eram comadres bolivianas, indígenas. Todas ali distraidamente conversando, então eu percebo que vão se aproximando um casal jovem, de loiros, e se juntam às duas conversando, as quatro não se dão conta. Dali a pouco mais duas russas, mais velhas e igualmente loiras, que estavam sentadas na mureta ali em frente desde que cheguei, se levantaram e se juntaram às quatro pessoas formando assim um grupo de, como diria um ator conhecido, "loiros dinamarqueses". E as comadres baixinhas e indígenas nada, só ali proseando. Quando a porta se abre para a próxima rodada as quatro param a conversa e se dão conta que algo não está normal, só que elas não sabem explicar exatamente qual era o problema, só ficam desconfiadas. O espaço ocupado pelos seis fica apertado então eles vão aos poucos se aproximando para trás e as empurrando pela aproximação, até que elas instintivamente se rebelam contra essa pressão invisível e se irritam, fecham a cara, cruzam os braços e xingam os russos. Aí os russos com muita naturalidade e um sorriso de deixa disso comentam alguma coisa em seu idioma entre eles e tentam acalmar as bolivianas e logo em seguida as esquece de novo fazendo de conta que nada aconteceu. Aquilo que era jogo de cintura! Depois desse evento que encontrei Marcos e o chamei.

Atrás de nós tinham dois homens, quando descobri que eram italianos me pus a bolar uma estratégia de abordagem. Os dois estavam dentro de uma daquelas crises existenciais que fatalmente todo ser humano passa, a diferença está na intensidade, no caso de pelo menos um deles foi na daquelas mais intensas. Ambos estavam sós, sem casa e abandonados à própria sorte, dormiam na rua. Sim, existem europeus nessa situação degradante também, só que até nisso o caso deles é com mais dignidade. O mais novo, Guido, era um rapaz por volta dos 27 anos, boa aparência, cabelo rapado, esbelto, rosto judiado com algumas cicatrizes no estilo Holiwoodiana. Era recém saído de uma clínica de recuperação para dependentes de drogas, ele nos relatou suas experiências, sua esposa não quer mais saber dele, não pode se aproximar dos filhos, eram dois, estava sem emprego, mas tinha uma profissão, entendia de torno. Naquele país o ofício de torneiro é emprego praticamente garantido, o problema dele é que parecia um desajustado mesmo, conversando dava para sentir um conflito em sua personalidade, demonstrava princípios ao mesmo tempo que se fosse provocado não dava para garantir nenhum controle de sua parte. O outro era mais velho, barbudo e não possuía um problema aparente. Parecia que estava naquela vida por opção, era otimista, às vezes trabalhava, gostava de rodar por aí, eu acho que ele não gostava muito de se submeter às regras. Ficamos nós quatro conversando por um bom tempo na fila, paramos bem de frente da porta, justamente na nossa vez barraram a entrada no refeitório, por isso tivemos bastante tempo para conversarmos até finalmente voltarem a chamar para almoçar.

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