sábado, 14 de outubro de 2006

40 – Conan, o bárbaro.

A noite foi um indicativo do que estava para vir. Para começar Conan nem apareceu no quarto para dormir, os finais de semana dele começam na sexta-feira. Um senhor tão respeitável. Quando se vê ele conversando assuntos sérios é como se fosse um sábio falando. Uma firmeza, com seriedade, uma postura de gente que tem discernimento e já viveu muito na vida, aquele ar de altruísmo inabalável. Exemplo clássico de que a aparência se sobrepõe a qualquer conteúdo. Não que Conan não fosse tudo isso, o problema é que ia tudo por água abaixo nos finais de semana, ele se transformava quando se entregava àquilo que ele mesmo classificava como o maior atraso na sua vida. O caso dele era mais delicado do que resumir a um problema cultural de origem. É muito mais complexo do que qualquer um pudesse imaginar. Quando tive conhecimento dos detalhes de sua vida me deu arrepio. Meu amigo Conan, assim como Marina, passou algumas décadas trabalhando no Brasil, só que Conan ficou peregrinando pelo litoral, vendendo tudo o que pudesse ser vendido em praia, já vendeu bronzeador, coco, pipa, picolé, sombrinha e por aí vai, me disse que o que mais rendeu foi vendendo bronzeador. Quando juntou um bom dinheiro voltou para Bolívia e comprou um caminhão, constituiu família lá e vivia bem. Um belo dia resolveu vender seu caminhão e partir para a Itália persuadido por um conhecido distante que por lá esteve. Deixou seus filhos e esposa e partiu já avançado na idade, quando cheguei na casa fazia aproximadamente uns quatro anos que Conan tinha chegado. Logo seu dinheiro acabou e ele se viu sem alternativas, não tinha ninguém que pudesse contar e teve que morar nas ruas, com uma agravante, sem documentos. No verão é até um alívio dormir nos bancos da praça, sem levar em consideração o desconforto e perigo de se expor, o calor que se faz naquela região no verão é comparável com a de Cuiabá, sufocante. O problema vem no inverno, quando chega a nevar, não dá para um ser humano comum e por conta própria suportar uma vida daquelas, ainda mais idoso. O meio mais eficaz e possível de contornar aquela adversidade que ele se encontrava foi a bebida, se mantendo embriagado o tempo todo era mais fácil de suportar aquilo, além de ser um eficiente aquecedor. Pelo que ele me contou, foram no mínimo dois anos que ele ficou naquela situação. Para cuidar da higiene pessoal, o que se adotava era ir a "caritas", centro de caridade, uma vez por semana e tomar banho, se barbear e trocar todas as roupas para enfrentar mais uma semana. Só para ir a "caritas" que ele tinha que se manter sóbrio. Esse estilo de vida que ele foi obrigado a adotar o induziu a um ciclo vicioso, ficava difícil encontrar um trabalho embriagado, sem poder ter uma aparência apresentável, por outro lado a falta de dinheiro e o frio o induzia a se afundar na bebida, tinha ainda o problema de não ter documentos e ter uma idade avançada, era mais difícil ainda. Um belo dia veio uma dessas anistias que a Itália concede de tempo em tempo aos imigrantes ilegais que lá se encontram, só que para se obter o "Permesso di Soggiorno" era preciso que algum patrão se responsabilize pelo documento. Isso deu uma chacoalhada no Conan, felizmente ele reagiu e começou a buscar ajuda, então na igreja de Mochos arrumaram um trabalho para ele, um trabalho que ninguém queria e por isso sobrava vaga, cobrir galpões. O pior era cobrir os galpões no inverno, lá em cima, nas alturas, ele contou que foi um pesadelo. Pelo menos serviu para conseguir a permissão para trabalhar legalmente. Com o dinheiro que ele juntou desse trabalho e os documentos regularizados ele conseguiu uma base para se reerguer até se encaixar na produção de "piastras", que seriam pisos de cerâmica, onde trabalhava até aquele momento e parecia firme. Com os documentos regularizados e um pouco de dinheiro, Conan trouxe sua família para Bérgamo, os filhos já são grandes, moços, não cheguei a conhecer nenhum deles, pois seu casamento se desmanchou na Itália e Conan vivia sozinho na casa enquanto que seus filhos e ex-esposa viviam em outro lugar. Conan dizia que havia conseguido aqueles documentos com sangue, com muito sangue.

Acho que minha mãe estava pensando nesse cenário quando me disse que eu sempre poderia voltar se não desse certo, o orgulho nos faz enfrentar cada barra.

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