sábado, 18 de novembro de 2006

68 – Litoral.

Quando voltei para dentro ninguém comentou nada sobre Elizabeth, nem para o bem e nem para o mal. Em países com nível educacional mais evoluído existe um grande diferencial no que diz respeito à personalidade das pessoas e a interação dos demais com elas, não importa de que país venha, estando com pessoas de diferentes nações a postura é a mesma, ninguém comenta sobre traços de personalidades, estilo de se vestir, mentalidade, ou coisas afins. Isso não é uma regra, mas funciona em 90% dos casos. Eu percebi esse diferencial na comunidade boliviana que estava fazendo parte, era mais ou menos assim, com exceção de um ou outro. De qualquer forma nunca me importou muito a opinião dos outros sobre meus amigos.
Fiquei lá embaixo brincando com as crianças e fazendo um social com os demais, conversei com Marcos um pouco, ele estava muito aflito, não suportava mais aquela vida, queria sair daquela cidade, só não o fazia porque seu passaporte estava preso pelo dono da casa.
– Se eu pudesse rever meu passaporte não pensaria duas vezes, essa cidade é muito devagar, existem poucos lugares para procurar trabalho, nem se compara com Milão, por exemplo. – Ele era fã daquela cidade, sempre estava falando de lá.
– Então... Aquela brasileira que é voluntária no seminário me disse que agora vai começar a temporada no litoral e se consegue muito dinheiro lá.
– Interessante, me parece uma boa mesmo, logo vai começar o verão e todos vão viajar, essa cidade fica deserta nessa época. O problema é que mesmo se eu conseguir reaver meu passaporte vou ter que arrumar dinheiro para ir até lá.
– Se eu fosse você eu partiria sem passaporte mesmo. O que você tem a perder? E tem mais, eu iria para o litoral de carona, ou arrumava uma bicicleta e me deslocava para lá pedalando, você vai levar no máximo uma semana para chegar. Uma semana parado ou uma semana pedalando dá no mesmo. À noite você dorme num saco de dormir e procura comida nas igrejas. – Eu comecei a ficar com vontade de fazer aquilo.
– Não! Não creio que isso vá dar certo... Quem sabe? – Ele me pareceu meio balançado.
Mais ou menos uma semana antes àquele dia eu havia encontrado dona Mara na rua, ela estava saindo de uma casa de telefone e vivia ali perto, eu vi o prédio de sua casa. Ficamos um bom tempo conversando. Ela tinha ido para a Itália a 20 anos atrás com um namorado italiano, eles se conheceram e um mês depois ela já estava partindo. Disse-me que o sogro dela a adorava, mas não deu certo com o namorado, ele passou a destratá-la, porque creia que dona Mara estava em suas mãos. Ledo engano, um dia ela deu um basta em tudo e partiu para o litoral, começou descascando batata. Foi uma das melhores épocas da vida dela, ganhou muito dinheiro. Boa parte da Europa desce para as praias italianas no verão, são muito badaladas. Eu era um pouco acético com essas coisas, presenciando aquela crise e o desapontamento que tive ao chegar na Itália não me animava a ir tentar a sorte em lugares alternativos, até porque o meu interesse mesmo era seguir minha profissão, eu já estava atingindo um nível que me permitia dar um passo maior, pelo andar da carruagem eu sentia que estava preste a almejar um posto mais adequado, mesmo porque minhas alternativas de se trabalhar como operário estavam se esgotando. Olhando de agora parece que eu estava meio fora da realidade, não consigo ver agora o que me levava a pensar daquela forma, se nem um posto menos qualificado eu conseguia me encaixar. Naquela época mesmo às vezes eu me questionava se lá no fundo, no meu subconsciente, eu não estivesse com vontade de pegar no pesado e estivesse arrumando desculpas para não trabalhar. É muito difícil enxergar embaixo da tempestade, a gente fica confuso, se perde a noção de direção, sem um plano de vôo robusto fica pior ainda.

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