sábado, 30 de setembro de 2006

29 – Città Alta.

Acho que me enganei a noite em que eu acordava com os sons de Maria vomitando foi de domingo para segunda-feira, pois na noite anterior eles passaram a noite na rua. As crianças da casa aprenderam a se virar sozinhos logo cedo, era uma graça ver Jorgito cuidando da irmã mais nova, ele tinha apenas 11 anos, Lica tinha 9 anos. Umas crianças vivas, comunicativas e principalmente inteligentes, falavam italiano muito bem, eu tentava me aproximar de Lica e pedia para ela conversar só em italiano comigo, funcionava, aquela garotinha me ensinou tanto. Em casa às vezes misturavam italiano no espanhol e mesmo a menina não sabia muitas palavras em espanhol. Jorgito era um menino simpático, sorridente, já tinha consciência dos danos da bebida na vida, não gostava daquelas garrafas e sempre as jogava fora quando surgia uma oportunidade. Dava gosto ficar com eles. A mãe, Maria, tinha deixado eles com o pai na Bolívia e partido para Bérgamo sozinha, tentar a vida lá. Ficou algum ano isolado de sua família, batalhando. Tento imaginar o que ela passou, conhecendo-a e sabendo de suas companhias não é muito difícil saber como foi. Um belo dia ela conseguiu, através das regulares anistias que o governo italiano dá aos imigrantes ilegais, documentos, passou a ser legal, então fez o que era de costume, trouxe toda a família e os regularizou também. Jorge ficou meses desempregado, vivendo da renda de Maria, até que conseguiu trabalho nessa fábrica onde trabalha até hoje. Por isso, quando Maria ficava brava, jogava na cara de Jorge que o apartamento era dela, ele ficava uma fera, era uma comédia. A noite foi uma tranqüilidade de novo, dessa vez porque todos tinham que trabalhar no dia seguinte. Eu mal podia esperar para ligar ao Alex e saber das novidades, lá no fundo eu queria acreditar que ia dar certo, que um estranho estaria preocupado em me arrumar um emprego, não podia acontecer nada de errado mesmo.

Levantei disposto a finalmente agir, andar pela cidade em busca de emprego e aprender italiano, conhecia mais os macetes com as conversas que tive, com Marcos principalmente. Aprendi as palavras que devia usar “Cerco lavoro” (lê-se tcherco), mas ainda estava faltando o currículo. Tomei o café da manhã com o casal como de costume e saí com eles para a rua. Tem horas que a teoria se torna muito mais fácil que na prática, caminhei e não encontrava nada, até que vi uma agência de empregos, entrei lá e soltei as duas palavrinhas, a atendente me disse alguma coisa e balancei a cabeça, no começo era duro entender, na terceira semana já tirava de letra tudo. Consegui preencher o formulário ali mesmo. Quando a gente preenche um o segundo se torna mais fácil e depois não tem mais segredo, passa a ser repetição. Era isso que estava faltando para eu fazer meu currículo, uma idéia do que é preciso de dados para colocar. Nesse dia fui em apenas duas agências e quando percebi estava na base da montanha que vai dar na Città Alta. – Já que estou aqui o que custa subir né? – Logo me vi em um beco que subia em direção ao topo. Fui seguindo a ruela, deserta, não se via ninguém. Subida íngreme. Finalmente cheguei na ponte que ia dar no portal suspenso das muralhas da cidade. Que visão mais linda! toda de pedra. E pensar que aquilo tudo foi construído a mais de quinhentos anos, faz a gente refletir em muitas coisas.

Atravessar o portal foi algo místico, parecia estar entrando em outro mundo. Em volta da cidade, acompanhando a muralha, havia um jardim onde as pessoas passeavam, corriam, liam. O povo Europeu sabe aproveitar muito bem seu espaço público, são sempre lotados. A vida lá em cima era muito diferenciado do resto da Itália, o trânsito era limitado só para carros autorizados, o ritmo das pessoas eram mais desacelerados, se exercitavam muito subindo aquelas ladeiras, no topo de tudo, no cume da montanha tinham as igrejas, uma basílica, museus, universidade. Claro, eu tinha de dar um caráter não turístico à minha ida até lá, fui na universidade me informar sobre os cursos da minha área. Infelizmente não tinha nada que me encaixasse. Caminhei várias horas por tudo, sempre perguntando qualquer coisa que me vinha na cabeça só para praticar um pouco italiano, qualquer coisinha era motivo de parar uma pessoa. Um fato curioso era que não se via estrangeiros ali em cima, só italianos. – Será que não tem um jeito de eu me mudar para cá? – Rodei toda a cidade e só parei quando encontrei uma torre de vigia, tinha um parque, igreja e até um tanque da Segunda Guerra Mundial estacionado, aquela máquina ali avistando qualquer inimigo em baixo devia fazer um estrago violento. Apareceu ali um grupo de estudantes do primário com um guia explicando tudo, os acompanhei até o final, de longe, afortunadamente o guia tinha uma voz forte e muito clara consegui compreender algumas coisas, não muito, percebi uma leve melhora.

O segredo é acostumar os ouvidos à musicalidade do idioma, depois disso consegue-se compreender o vocabulário que a gente vai formando paralelamente ao processo de adaptação dos ouvidos, não se pode ter aquela preocupação de entender o locutor, mas de captar a tonalidade e ritmo, todo idioma tem o seu segredo, um macete para acelerar o aprendizado, nas línguas de origem latina o macete está principalmente na pronunciação das palavras, a junção “ch” por exemplo, se pronuncia de modo totalmente diferente entre o espanhol, italiano e português. Depois de pegar o fio da meada, não tem muito no que avançar, é só criar vocabulário. Fácil.

O dia estava acabando, voltei para casa. Lá jantei com David e conversamos um pouco, Mercedes chegou depois, fazendo barulho, a festa de ontem não tinha acabado para ela ainda, estava grogue. Não deu para falar muito com ela. A sorte é que ela me lembrou que faltava alguma coisa. Ligar para o Alex! Dessa vez usei meu celular.

– Alex? E aí? Conseguiu encontrar com o encarregado?

– Olha só. Vem aqui na quarta-feira e traz o seu currículo, o encarregado pela contratação quer dar uma olhada.

– Como faço para chegar aí? A que horas?

– Você tem que pegar o trem para Varese, vem depois das 17:00H, me liga que eu vou te buscar no terminal de trem.

– Na quarta né? Pode deixar que estarei aí.

– Beleza, nos vemos então.

– Pô, pro cara ir me buscar no terminal é porque ele estava comprometido em me ajudar. – Pensei comigo.

Agora só falta eu fazer o currículo.

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